Nota de pesar por Tânia Quaresma

Nossa amiga cineasta Tânia Quaresma concluiu seu ciclo na Terra e nos deixará saudades. Suas obras, sempre inspiradas na luta dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiras, são um legado para o cinema documental do país. Tânia realizou em 2016 o documentário “Catadores de História” que conta de maneira sensível e marcante a realidade das catadoras e catadores de materiais recicláveis do Brasil, filme esse produzido em conjunto com o Movimento Nacional de Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR).

Somos gratos por termos convivido com ela e não esqueceremos de sua generosidade em contar nossas histórias ao mundo. Sua trajetória não será esquecida e continuaremos sua luta inspirados em sua memória.

 

Tânia Quaresma

Presente, presente, presente!

Sempre, sempre, sempre.

 

Filmografia

Catadores de História 

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Paulo Freire - Educar para Transformar

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Josué de Castro - Por um Mundo sem Fome

 

De Quem é a Terra?

Assista aqu

i

Trindade: Curto Caminho Longo

 


Nordeste: Cordel, Repente, Canção
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Memória

Diretora, roteirista e produtora mineira. Iniciou sua carreira profissional aos 16 anos, passando pelas mais diversas funções do universo da fotografia, televisão, cinema e vídeo.

Nascida em Belo Horizonte, Minas Gerais, Tânia passou sua infância mudando de uma cidade pequena para outra, convivendo com gente simples e ligada à natureza. Seu pai, advogado e comunista alagoano, acreditava na justiça, no diálogo e na paz. Sua mãe, mineira, cuidava da casa. O dinheiro não era farto, mas comparando com a pobreza por onde passava, sua família vivia bem. O que a incomodava bastante, pois não aceitava o fato de uns terem muito e outros não terem nada.

Aos 7 anos, sua família muda para Mato Grosso. Nessa época, já não era a filha única e sua mãe não tinha a mesma paciência. Como era cheia de energia e com idéias próprias sobre o que devia ou não fazer, incomodava muito. Então, foi mandada para um internato de freiras no sul de Minas, onde ficou durante dois anos. Lugar onde estudavam as filhas dos fazendeiros ricos, poucas meninas como ela entravam lá, graças à alguma meia bolsa ou ajuda de familiares. Tânia não podia participar de nenhuma atividade extra por não ter dinheiro para pagar taxa exigida. Uma das coisas que mais recorda, foi de uma noite em que projetaram cinema no colégio, com a exposição do filme ”Os 10 Mandamentos” e depois de tentar assistir pela fresta da janela, por não ter dinheiro para comprar o ingresso, foi pega por uma freira que a fez voltar chorando ao dormitório vazio, dizendo que filme era apenas para quem tinha dinheiro.

Quando tinha 14 anos, aconteceu o golpe militar. Sua mãe queimava pilhas de livros de meu pai. E logo mudaram-se para São Paulo, onde ela continuou estudando em um colégio público.

Um dia, aos 15 anos, visitando uma exposição de artes plásticas, conheceu o pintor Nelson Quaresma, de 23 anos. Nos quadros dele reconheceu cenas que observava na infância e não sabia como expressar: o abandono pessoal e social no olhar espantado, principalmente das crianças. Ficou encantada pelo trabalho e pelo artista... Então ela engravidou, casou e logo nasceu Alexandre. Passaram grandes dificuldades financeiras e de convivência, pois além de jovens e inexperientes, havia o conturbado momento político do país.

Então, Tânia resolveu procurar emprego e como não sabia fazer nada de especial, aceitou ser balconista de uma pequena loja de fotografias que ficava entre o colégio onde estudava à noite e seu pequeno apartamento. Nas horas de almoço, aprendeu a fotografar, revelar e ampliar. Tinha decidido ser fotógrafa.
O casamento ia mal. Discordavam em relação a vários assuntos, principalmente a educação do filho.

Quando se sentiu segura, fez um teste e foi contratada como fotógrafa do Jornal Folha da Tarde, do grupo Folha de São Paulo. Foi também reprovada no colégio público noturno onde estudava , na matéria “trabalhos manuais”, por não ter conseguido bordar uma camisa de neném. Achando aquilo um absurdo, deixou a escola formal de lado.

Adorava o seu trabalho, onde aprendeu muito, indo aos lugares onde estavam acontecendo fatos importantes para fotografar, ouvir pessoas... Seu casamento chegou ao fim e ela passou a morar só com seu filho.

O Brasil fervia. Movimentos estudantis e operários por toda parte. A profissão de fotógrafa começava a ficar perigosa, mas Tânia queria estar junto dos movimentos populares, fotografando, denunciando os abusos policiais. O jornal onde trabalhava era a favor da luta dos operários e estudantes.

Depois de fotografar os jogos olímpicos no México, foi convidada pelo governo cubano para conhecer a Ilha. Lá, fotografou e fez treinamento de guerrilha: aprendendo a atirar com metralhadora, plantar cítricos e cortar cana. Mas apesar de ter apreciado o país, decidiu não permanecer lá por ter a certeza de que a luta armada não era o seu caminho.

De volta ao Brasil, não foi presa por pura sorte. Nos jornais, seus companheiros de redação apareciam em fotos: mortos ou presos. Era difícil viver em um país, quando se queria mostrar a realidade, estando em pé de guerra: fome, violência, torturas.

Tânia se recusava a fazer fotos de publicitárias só para ganhar dinheiro. Fotografar para ela era um ato de amor, de crença. Precisava acreditar no que fazia. Então, passou a trabalhar em jornais e revistas como fotógrafa independente. Isso a possibilitava escolher temas e enfoque.

Mas um dia, sentiu vontade de ver suas fotos em movimento e entrou como cinegrafista estagiária na equipe do Jornal Nacional, da TV Globo de São Paulo. Logo suas imagens foram ao ar. A TV Cultura de São Paulo iniciava um novo jornal semanal com grandes reportagens temáticas. Foi contratada e filmava um curta-metragem por semana. Até que uma equipe de uma TV alemã que passava pela cidade, viu seu trabalho e ela acabou ganhando uma bolsa de estudos para aperfeiçoamento profissional na Alemanha. Inicialmente deixou seu filho com seus pais para embarcar, mesmo sem falar uma palavra em alemão. Logo que aprendeu um pouco da língua, conseguiu juntar algum dinheiro lavando pratos, e assim, trouxe Alexandre e lá moraram durante o ano e meio. Estar ganhando, mesmo que pouco, para estudar, lhe proporcionava tempo para pesquisar e se dedicar ao cinema e televisão, experimentalmente, mesmo que sua área favorita ainda fosse a fotografia. O que na época, era um campo profissional quase que totalmente masculino, tanto na Alemanha quanto no Brasil.

Seu filho frequentou uma escola gratuita para filhos de operários, pois o dinheiro da bolsa era pouco para as despesas. Por isso, Tânia trabalhava nas horas de folga, em uma floricultura do metrô. Seu filme-diploma foi sobre turcos que trabalhavam em Berlim. O que a fez sentir na pele, pois, muitas vezes, era confundida com uma turca.

Voltando ao Brasil, não faltou trabalho. Ganhava bem produzindo e fazendo câmera para TVs alemãs. Seu pai tinha sido cassado como subversivo e aposentado com 1/3 do salário, o que não dava para pagar suas contas.

Vivendo no Rio de Janeiro, circulava no meio artístico, namorava muito, ganhava bem e gostava de sua profissão. Alexandre estudava em colégio particular, fazia judô, inglês e começava a só querer usar roupas caras e da moda. Seus ideais políticos (não partidários, porque nunca se filiei a partido algum) estavam sendo procrastinados.

Depois de participar de um longa metragem no interior de Pernambuco, como assistente de câmera e fotógrafa de cena, sofreu uma lesão na parte vital do olho direito e perdeu a visão central. Isso a jogou em um espaço de pânico e insegurança. Foi como se o olho, ao invés de ter ficado cego, tivesse resolvido olhar para dentro, para a sua realidade interior. Aí vieram as clássicas perguntas filosóficas: mas afinal, quem sou eu, de onde vim, o que faço aqui nesse mundo?
O duro período a fez perder a profundidade de campo visual e ela temia tudo: não conseguia dirigir, descer uma escada, nada. Mas durou pouco. Com dúvidas existenciais ou não, precisava trabalhar para sustentar seu filho. E pensou: "Mulher em campo técnico, quase que totalmente masculino, tudo bem. Mas além de ser mulher, ter visão em um olho só? Assim, resolvi produzir e dirigir seus próprios filmes. Poderia, dessa maneira, fazer pelo menos a segunda câmera.

Acabava de voltar do sertão nordestino. Aquelas imagens fortes de pobreza e fome me impressionavam cada vez mais. Nas inúmeras idas à feira de Caruaru, a arte desse povo sofrido, colocada ali a venda, junto com feijão, carne e frutas, me encantou. Os livros de poesia, pendurados em cordões, como bandeiras em festa, falavam do universo mágico e doloroso do nordeste brasileiro, de forma alegre, simples e direta.
Decidi então que meu primeiro filme seria um documentário sobre o Nordeste, tendo como fio condutor a Literatura de Cordel. Montei o projeto e saí em busca de dinheiro.
Consegui alem do filme, produzir um disco com a trilha sonora e shows com os artistas que filmei. Eles eram bons no que faziam e viviam de sua arte. Eu tentava ser assim também.
O filme, meu primeiro documentário de longa metragem Nordeste: Cordel, Repente, Canção, foi exibido no Brasil e em vários outros países. Em alguns, estive presente. Era bom mostrar minha terra, com suas incríveis contradições, mas cheia de força, arte e cor.
O que mais me sensibilizou foi o fato das pessoas poderem se ver e se ouvir. Dar voz a elas , era o que eu mais queria.
E elas se acharam bonitas, importantes e riram de si próprias. Até o cego Oliveira, que tocou rabeca e cantou no filme, estava na primeira fila, assistindo tudo pelo olhar de sua mulher:
-“É tu, Oliveira, bonito. Ta lá, tocando a rabequinha...”
Isso foi em 1975 e eu tinha 25 anos.

De 1976 a 1979, produzi e dirigi em parceria com o músico Luiz Keller, o projeto Trindade , que reuniu grandes instrumentistas brasileiros (Egberto Gismonti, Hermeto Pascoal, Wagner Tiso, Nivaldo Ornellas e muitos outros), em 12 documentários de curta- metragem que juntos, formavam um longa. O projeto envolveu também a produção de discos e shows.

A vida no Rio de Janeiro virou uma loucura. Drogas por toda parte. Eu fumava, entre outras coisas, dois maços de hollywood por dia. Andava nervosa, via pouco meu filho e tentava compensar a ausência comprando presentes. E trabalhava sem parar.
Foi nessa época que o pai do Alexandre, que tinha se tornado meu grande amigo, foi morto por meninos de rua em São Paulo, com um tiro na cabeça. Alexandre, aos prantos, queria saber porque existiam” pivetes e trombadinhas”. Sentia raiva e queria vingança. Foi um momento forte, de decisão, de ruptura. Ali, optei por combater, de maneira pacífica, as causas que geram a fome, a dor e a violência. Tentei explicar ao Alexandre que a responsabilidade, não era só dos meninos, era uma questão social.
Mas qual seria a saída, se eu não acreditava em luta armada?

Em 1979, depois do lançamento do meu segundo filme documentário de longa metragem, Trindade: Curto Caminho Longo, e aproveitando o fim de um namoro conturbado, resolvi mudar radicalmente de vida. Foi quando tive um sonho...

Crianças de todos os pontos do Brasil, atraídas pelo som de um estranho flautista, reuniam-se em Brasília.
Seguindo a flauta mágica, encontravam uma passagem que dava acesso a uma feira/escola eco/ tecnológica, montada nos arredores da capital. Nela, crianças e adultos com coração de criança, trabalhavam em uma rede mágica de comunicação, que envolvia as pessoas em ondas amorosas, que faziam com que elas ficassem interessadas na preservação do planeta e na construção de um mundo novo, mais justo, baseado nas leis do amor.

Acordei com aquelas imagens fortes ainda vivas na memória. Anotei tudo e achei que estava diante do argumento do meu primeiro filme de ficção.
O sonho passava nitidamente uma mensagem de solidariedade, trabalho em grupo e tecnologia a serviço da vida e da educação.

Fugindo da vida delirante que levava no Rio de Janeiro, mudei com meu filho para São Paulo, onde não conhecíamos quase ninguém.
Trabalhei na TV Bandeirantes em um programa chamado Comunidade. Nele, mostrávamos soluções encontradas por pessoas quase sem recurso nenhum, mas que juntas, resolviam seus problemas comuns. Eu registrava pela periferia de São Paulo, o universo desses movimentos comunitários, sementes de ONGs que existem até hoje.
A Turma da Touca, que se reunia em uma vila que não tinha esgoto nem água encanada, e onde as ruas eram ainda de barro, me chamou particularmente a atenção. Pensei que seria uma boa oportunidade de meu filho e eu cairmos na real.
Alugamos uma casinha e passamos a viver ali.
Foi um belo período. Aquelas pessoas nos ensinaram muitas coisas: fazíamos compras comunitárias, reuniões semanais, grupo de teatro, construíamos creche... Ali desenvolvi a primeira oficina de vídeo com crianças.
O resultado do nosso trabalho passou na TV Bandeirantes e assistimos todos juntos. Foi um sucesso na vila.

Mas eu achava aquilo tudo provisório porque acreditava que minha meta era fazer o filme que batizei com o nome de Feira do Sonho. Tudo não passava então de “laboratório, locação, pré produção”... O ego cineasta, me dominou e passou a me comandar em tempo integral.

Um dia pensei: se o filme que quero fazer tem a capital do Brasil como cenário principal, preciso mergulhar nela...
Em 1983, nos mudamos para Brasília, assim de repente, sem planejar.
Ao mesmo tempo que formatava o projeto de captação de recursos para o filme, precisava trabalhar para sustentar meu filho e eu.
Convidei então um grupo de jovens artistas brasilienses, a maioria totalmente inexperiente em televisão, para fazer comigo uma série de programas de tv sobre a cidade , para comemorar seus 25 anos.
Nossa produção independente funcionou como uma oficina , onde as pessoas iam aprendendo na prática.Meu filho começou a fazer câmera e a partir daí, nunca mais parou. Conseguimos patrocínio e espaço para veiculação.
Nossos programas foram ao ar. Fizemos mais duas séries semanais, sempre abordando a história da construção da cidade, sob o ponto de vista dos operários. Centenas de pessoas foram entrevistadas, principalmente os velhos pioneiros, que vieram construir a nova capital, acreditando estar criando um espaço mais justo para viver com suas famílias.
Não foi bem isso que aconteceu. Hoje, eles têm dificuldades para entrar nos palácios que ajudaram a construir. Moram nas cidades satélites, muitos em condições sub-humanas.

Eu estava feliz: Brasília tinha me recebido de asas abertas. Achei então que já era hora de ter uma base fixa, um ponto permanente para pouso e decolagem. Pensei em comprar um terreno nos arredores da cidade porque queria muito retomar às minhas raízes mineiras, de interior. Nas proximidades da chácara do fotógrafo Rui Faquini, a 40 quilômetros do plano piloto, fiquei perplexa ao reconhecer, no alto de uma colina, o espaço que tinha visto no sonho. Era ideal para rodar a FEIRA DO SONHO, pensei.
Só que existiam uns pequenos detalhes a serem considerados : a luz elétrica não passava nem perto,a terra era ruim e não tinha água num raio de quilômetros.
Mesmo assim, comprei o terreno de 22 mil metros, que era muito barato, montei uma barraca no topo da colina e me mudei para cá.

Em 1985, institui a Fundação Bem Te Vi.
Em 1986, iniciei um longo processo de auto conhecimento com o terapeuta chileno Doro, que mudou minha vida.
Durante mais de 10 anos trabalhei com o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua fazendo vídeos e oficinas de comunicação.

Nesse meio tempo, conheci o mestre zen japonês Tokuda. Tive a sensação de ter chegado finalmente em casa, quando sentei em zazen (meditação sentada zen) pela primeira vez. Fui ordenada monja anos depois.

Em 2003 criei, com a editora Malu Salles, a produtora Caminho do Meio Criações Audiovisuais, que dirijo até hoje.
Percebi que meu sonho com Brasília era mais que um filme: ele me indicava um projeto de vida. Acreditei nele e vivo essa realidade, desde então.

O que pretendemos é que esse trabalho possa, de algum modo ,contribuir para a felicidade de todos os seres.

Fonte: http://bemtevibrasilia.blogspot.com.br/