Nota de pesar por Carlinhos da Coopamare

10-12-2014 - É com pesar que comunicamos o falecimento do catador Carlinhos, Carlos Roberto Fabrício, e um dos fundadores da primeira cooperativa de catadores do Brasil, a Coopamare, de São Paulo. Carlinhos faleceu aos 62 anos na sua casa na Baixada do

Glicério em decorrência de problemas cardíacos. Teve papel importante na organização dos catadores da cidade de São Paulo e deixará saudades aos seus companheiros e companheiras de luta.

Carlinhos, presente!

Comentários

ESTIMADOS CATADORES -

RECEBO A NOTICIA DO FALECIMENTO DO CARLINHOS COM TRISTEZA, MAS QUERO LEMBRAR O COMPROMISSO DELE COM A LUTA PELOS DIREITOS DOS CATADORES E AS MUITAS LIÇÕES QUE ELE ENSINOU PARA MIM E PARA MEUS ALUNOS.

CARLINHOS VIVERÁ PARA SEMPRE EM NOSSA MEMÓRIA!

MARIA CECILIA


Dr. Maria Cecilia Loschiavo dos Santos
Full Professor
University of São Paulo - Brazil

 

 

Caros colegas do MNCR,

Em da WIEGO envio meus mais sinceros sentimentos pela perda deste grande lutador.

Meus sentimentos à família do Carlinhos e a todos os companheiros do MNCR.

Abraços

Soninha

 

 

Queridos, acolham o nosso abraço de profundo sentimento por esta perda. Vibramos para que a energia do Carlinhos continue alimentando de esperança esta nossa luta.

Glaucia Barros

Diretora Programática da AVINA

Nossos sentimentos a familia e que Deus possa acolher a sua alma junto a ti.

 

Coopercaps

Muita força a sua familia.

Valquiria - COOPERPAC


Companheiro, que seu caminho/travessia, seja de muita alegria e paz. Sua trajetória em nosso meio foi de muita harmonia!


Descanse em Paz,


Minhas condolências à família.


Luzia Maria Honorato -Comitê da Cidade


Nossos sentimentos a família, e que Deus recebe seu filho com muito amor. Família Clube de Mães do Brasil

Conheci Carlinhos em maio de 1992, em um dos primeiros encontros de catadores realizado em Santos/SP. Ele sempre desempenhou um papel importante na Coopamare e no MNCR, junto com Dudu e outros camaradas que conduzem a luta dos catadores. Fico triste com esta sua morte prematura.

Bertrand Sampaio de Alencar




 

História de Carlos Roberto Fabricio

Já fui "dono" muito tempo da Coopamare

Autor: Museu da Pessoa Publicado em 29/08/2005




P - Eu queria que o senhor falasse o seu nome completo, o local e a data de nascimento.



R - Meu nome é Carlos Roberto Fabrício, nascido em São Manuel, em 1952.

P - E o nome dos seus pais, Carlos?



R - Alcides Fabrício e Adélia Cardoso Fabrício

P - O que Sr. Alcides fazia, com que ele trabalhava?



R - Ele era motorista.

P - Você lembra dele trabalhando na sua infância?



R - Lembro, trabalhava junto também.

P - O que você fazia?



R - Ah, eu sempre estava junto com meus 12, 13 anos, sempre estava trabalhando junto.

P - Ele era motorista do que?



R - De caminhão.

P - Você morava na cidade, morava aonde?



R - Parte na roça, mesmo, e um pouco na cidade. Um pouco não, o resto na cidade.

P - Até que ano mais ou menos você ficou na roça?



R - Eu fiquei na roça até os meus 16, 17 anos.

P - Você brincava do que quando era criança?



R - Na roça era até bom, era carrinho de mão, hoje aqui é pipa, lá era papagaio. Coisas assim, carrinho de carretel...

P - Ia pescar, nadar?



R - Sim, pescar, nadar no rio.

P - E você tinha que ajudar seu pai lá na roça?



R - Não tinha muito que ajudar, porque ele sempre, na roça mesmo, ele era motorista da fazenda, então não tinha muito que ajudar, tinha estar ali, só por estar junto, mesmo, perto.

P - E vocês eram em três irmãos, né?



R - Três irmãos. Três homens.

P - E como era o relacionamento de vocês?



R - Nosso relacionamento sempre foi bom. Sempre por ser só homem em casa, só minha mãe de mulher, era muito bom.

P - Vocês saiam juntos?



R - Saía junto, tudo que fazia estava certo não tinha, não tinha erro, não tinha briga, não tinha nada.

P - Você tinha educação religiosa, vocês tinham que ir pra cidade pra ir pra igreja?



R - Não, na fazenda que eu morava tinha igreja.

P - Ah, é?



R - É. E aos domingos o padre ia na igreja.

P - Era fazenda grande?



R - Era... Até, inclusive, depois de trabalhar junto 15 anos com uma pessoa aqui, fui descobrir que ela era sobrinha do dono da fazenda onde a gente morava. Foi um negócio assim, ela atendendo o celular, eu no carro com ela. Ela falou um sobrenome lá. Eu falei: “esse nome não é desconhecido, não.” Ela: “por que?” Eu contei a história pra ela, ela ficou de boca aberta, falou: “não acredito, Carlinhos”.

P - É mesmo?



R - E é verdade. Ela falou: “então, esse daí, esse que você está falando é meu tio.”

P - E essa fazenda era muito grande? Descreve como é que era a fazenda pra gente.



R - Era uma fazenda grande, não era fazenda pequena, não, né? Fazenda aí de uns... não sei dimensão de alqueire, mas, era muito grande. Era quase uma Vila Madalena.

P - E plantava o que ali?



R - Café, feijão, arroz, tudo, tudo, plantava ali, milho.

P - Carlos, tinha mais criançada com vocês? Quem era a turminha de vocês ali na fazenda?



R - Ah, tinha muitos, né? Eram os filhos dos trabalhadores. Nesse tempo, as fazendas não eram uma casa só, eram uma colônia, como se dizia. Então, era muita gente que morava, então tinha muita criança.

P - E vocês brincavam do que?



R - Brincava de papagaio, carrinho, muitas brincadeiras, até esqueço as brincadeiras.

P - Vocês aprontavam muito?



R - Aprontava muito.

P - Conta uma traquinagem dessa que vocês lembram.



R - Traquinagem que eu lembro, mesmo? É, bicicleta sem freio. Lá não tem bicicleta, então a gente mesmo arrumava. Quando aparecia uma bicicleta, era pra todos, 15, 20 moleques iam andar na bicicleta. Então, a gente caía, era um barato, mesmo. A diversão era montar nos cavalos lá, escondido do patrão, do administrador.

P - Que não podia?



R - Não podia, a gente fazia isso. E talvez ir nadar escondido, na piscina da casa do homem. Ir pegar fruta pra nós, naquele tempo, era roubar. Vamos lá roubar manga, vamos roubar fruta. Não podia entrar lá, nós entrava. Tinha o zelador lá, mas à noite ele ia dormir, ou se não ele tomava umas canjibrinas, então a gente ia. Via a hora que ele estava meio chutado e ia de tarde pegar as manga. Tinha o colega da gente que enfrentava ele. Contava pro meu pai, “eu te bato”, ele já era um velhinho, nem bate nada, é uma educação imensa. Tinha um que fazia isso, só, que ameaçava o homem lá, o senhor.

P - Só ameaça.



R - Só ameaça, só. Depois saía de lá, só ia dando risada. Deus me livre se o pai dele soubesse que ele tinha falado aquilo pro senhor, ele já estava meio tocado, na segunda-feira acabava esquecendo, né?

P - O pai dele era bravo?



R - Era o pai desse menino era bravo. E a gente dava risada dele.

P - Por que?



R - Ah, porque a gente chegava, entrava no pomar e escolhia os pés. “Esse pé aqui é meu, esse pé aí é seu”.A laranja ou a manga, até escolhia já, se apossava. Aquela hora. “Ó, esse pé de laranja aqui é meu, hein? Aquele lá é seu, se vira aí.”

P - Aí vocês pegavam e levavam pra comer fora ou vocês comiam lá?



R - Não. Comia lá mesmo. Comia e enterrava a casca.

P - É uma boa lembrança?



R - É uma boa lembrança, nossa senhora. Quando me lembro disso bate doído. Não volta mais mesmo, né?

P - Vocês costumavam ir pra São Manuel, pra cidade? Como que era isso?



R - De vez em quando a gente ia pra cidade, viu? Era só quando tinha o circo, assim, um cinema, um filme bom, que reunia tudo pra ir. Mas era difícil a gente ir pra cidade.

P - E aí vocês iam como? A pé?



R - Ia com o carro lá da fazenda, mesmo. E ia todo mundo.

P - Você lembra de alguma vez?



R - Lembro, era na época ali, em São Manuel, na região, o circo de piranha, né? Não sei se chegou a conhecer esse circo, a região todinha ali era de piranha. Então a gente ia, nesse circo, quando vinham as duplas, não era cantor, eram duplas, né? Eu lembro de assistir lá Sulino e Marrueiro, O punhal da vingança, isso foi falado lá na fazenda, então, as fazenda tudo foi, ficou cheia a cidade.

P - Que era um teleteatro?



R - Isso.

P - Como se fosse um teatro?



R - Isso.

P - O punhal da vingança.



R - O punhal da vingança, essas coisas.

P - Como é que era essa história?



R - Ah, era umas história muito, né? Que tinha uma namorada e ele matou ela ou ela se matou, eu não lembro muito bem, não.

P - Mas te impressionou?



R - Impressionava a gente.

P - É? Não tinha televisão na época?



R - Não tinha. Tinha só um rádio, esses rádios que ligava uma hora, duas horas, precisava desligar que ele esquentava. Começava só arranhar. Então, eu lembro como se fosse hoje, onde tinha um rádio ficava um monte de gente ao redor, olhando pro rádio. Eu lembro quando apareceu a televisão, eu assistia televisão com uns 20 ou 30 metros de distância, que o administrador comprou uma, então a gente ficava da janela dele, lá no terreirão, vendo a televisão. Só via mal e mal as imagens. Bem de longe, mesmo. Aí ia achegando e quando ele menos esperou, nós já estávamos dentro do passeio da casa, assistindo televisão. Ele lá dentro com a esposa dele assistindo, e nós dentro do passeio.

P - E você lembra o que estava passando?



R - Eu não lembro não. Eu lembro só daquele intervalo que tinha o... Café do Ponto. Era uma mulher que fazia. Uma propaganda, do Café do Ponto.

P - Olha.



R - E eu, os Trapalhões, não era, não era os Trapalhões, era o... na época era o...Golias, isso, Golias. Sempre o Golias.

P - Você gostava?



R - Eu gostava, né? Era preto e branco, ainda. Depois quando uma pessoa conseguiu comprar uma televisão, maior tremedeira lá. Eles acharam que estava boa. Hoje eu olho na televisão em casa, parece um cinema. E a televisão que tinha lá pra nós assistir, tremia, parecia não sei o que. E a gente ia assistir jogo, não sabia se eram jogadores ou se eram as bolinhas que estava... Estava ótimo pra gente.

P - Carlos, na sua casa era tua mãe e mais três irmãos, né, você tinha que ajudar na casa?



R - Tinha, tinha.

P - Quais eram as suas tarefas?



R - As tarefas da gente eram as mesmas tarefas de uma menina de casa de hoje, né? A gente fazia tudo, menos lavar roupa. Mas, fazer comida, limpar a casa, a gente fazia tudo.

P - Tinha que encerar, passar aquele escovão?



R - Não, não tinha, porque era um tijolo, e esse tijolo era mais lavado. Então tinha que lavar, mas encerar não tinha cera. Era fogão de lenha. Dentro de casa.

P - Aí tinha que catar lenha de manhã.



R - Catar lenha. Isso. Não tinha a gás, mesmo. Nem me lembro quando a gente veio usar fogão de gás na cidade. Ainda assim, mesmo na cidade, quando a gente foi morar num bairro afastado, não muito afastado bem na beira da linha, a gente tinha fogão de lenha.

P - E tinha luz elétrica, não?



R - Tinha luz elétrica, tinha, bem fraquinha, mas tinha. Aquele motor. Telefone era um fio só. Sei lá como que funcionava aquilo.

P - E Carlos você estudou aonde?



R - Eu estudei parte em Água Vermelha, nas fazenda, e depois na usina. Que a gente morou na usina também.

P - Era uma usina de cana-de-açúcar?



R - Cana de açúcar.

P - Seu pai trabalhava pra usina?



R - Pra usina.

P - Você gostava da escola?



R - Gostava.

P - O que te chamava atenção na escola?



R - A escola era o estudar mesmo que chamava atenção, mas dava meus canos também. Que quando foi nos dois anos últimos, a gente passou a estudar numa fazenda na outra. Então, naquele intermédio, tinha vez que eu ficava no meio do mato, mesmo. E eu era o maior aluno da turma e eu jurava: “vocês apanham se vocês contarem pra minha mãe, hein”. Então, que bobeira ficava lá caçando passarinho até eles vim da escola. Aí depois eu vinha com eles.

P - Eles iam pra aula e você ficava caçando passarinho?



R - Ficava.

P - Você não queria ir pra aula.

P - Seus irmãos iam com você?



R - Não. Eu estudei sozinho. Eles estudaram depois, né? Eu tenho um irmão mais novo que eu 11 anos. Desse 11 anos, o outro veio com 5, aí eu fiquei um tempão caçula.

P - Você ficava o dia inteiro sozinho, ali caçando passarinho, nadando?



R - É, ficava ali, tinha que ficar perto ali pra eles não passar e não deixar eu, né? Se eles deixa, e chega sem eu lá, o bicho pegava, né?

P - E algum dia o bicho pegou?



R - Não, eu tive esse cuidado, tomava esse cuidado.

P - E quando que você mudou pra cidade?



R - Quando a gente mudou pra cidade já foi mudando, né? Antes quando era pequeno, eu morei na fazenda, na usina e depois quando, com o conhecimento que a gente tem ali, então quando eu fui morar pra cidade, aí logo já eu arrumei serviço na usina que as mesmas pessoas que eu conhecia na fazenda trabalhava na usina. Então, é fácil, né?

P - E aí você foi trabalhar como turbineiro?



R - Turbineiro.

P - O que que quer dizer isso? Explica para a gente.



R - Turbineiro é um negócio que fica girando lá, com velocidade alta, com pressão, vapor, pra fazer o açúcar. Da turbina ele já vai pro saco.

P - Mas que que você tinha que fazer?



R - Tinha que mexer a turbina, até clarear o açúcar.

P - Na mão, mesmo?



R - Na mão, na pá.

P - Era manual?



R - É, quer dizer, na pá. Não era manual. Tinha a manual também, mas, na época minha, estava encostada. Era mais só olhar o ponto, mesmo, depois limpar ele com a pá.

P - Você aprendeu com quem?



R - Com o pessoal lá da usina. Quando a gente entra, sempre fica um, dois, uns três, quatro dias junto com a gente.

P - E aí você já recebia um salário com isso?



R - Salário. Já, em 1970, é o primeiro registro na minha carteira.

P - É?



R - 1974, 72, por aí.

P - Você lembra o que você fez, assim, com seu primeiro salário?



R - Não lembro. O dinheiro ia pra casa. Ia direto pro meu pai. Mas isso foi só uns 3 ou 4 meses. Depois já tomei conta. Mas com responsabilidade, né?

P - O que você queria fazer com o dinheiro?



R - Ir pra rua mesmo, né? Pras gandaia.

P - Que que tinha de gandaia em São Manuel? Era bailinho...



R - Bailinho, jardim. Eu comecei, também, beber muito cedo, então, tempo em bar, bola. Era isso a diversão lá.

P - Quantos anos você tinha?



R - Já estava com 18, 19 anos.

P - Você bebia muito?



R - Muito. Passava mal.

P - E aí você continuou assim até quando?



R - Eu fiquei até 70 e... 75 já vim pra São Paulo. Foi assim que eu fui pra Bauru, fiquei acho uma semana em Bauru. Depois fui pra Jaú.

P - O que que você foi fazer em Bauru?



R - Porque eu aprendi uma profissão de pedreiro. Aí eu fui trabalhar em Bauru, depois a Camargo estava fazendo um hospital em 75, ela fez ali em Jaú. Aí eu fui trabalhar ali. Eu trabalhei mais 1 mês ali, dali de Jaú mesmo, nem em São Manuel eu vim, eu vim pra São Paulo. Quebrei a cara.

P - Por que?



R - Quer dizer, não quebrei muito a cara porque eu cheguei num dia, no outro dia já estava empregado. Uma época boa de serviço.

P - Você veio pra trabalhar de pedreiro?



R - Vim pra trabalhar de pedreiro. A única que eu tinha, que eu tinha aprendido.

P - Mas, pela Camargo, ou não?



R - Não, eu vim, eu vim na doida e chegou aqui acabei entrando na Camargo, mesmo.

P - Você lembra da viagem? Você veio de que?



R - De trem. Cheguei aqui, a hora que eu parei ali na Estação da Luz, eu fiquei perdido. Fui de um lado. Fui do outro. Falei: “e agora? Agora o bicho pegou aqui.” Mas pra voltar tinha vergonha, né? Falei: “eu tenho que enfrentar, fazer o que?” Aí fiquei por ali um tempo. Mas aquele tempo era fácil que a gente, onde a gente estivesse, era a mesma coisa. Já chegava uma pessoa, via a gente meio perdido, já convidava pra ir em um lugar, pra ir pra malandragem. Chegou um rapaz também com uma mala na mão. Falou: “ó, você está procurando serviço? Falei: “estou.” Aí: “eu já trabalhei numa firma aqui embaixo, aqui no Parque Dom Pedro e ela está pegando. Vamos lá?” Eu falei: “vamos.” Eu não falei nada pra ele que eu não conhecia aqui, né? Eu falei: “vamos.” Aí eu fui. Aí eu fiquei, ele não ficou.

P - Carlos, qual foi a tua primeira impressão de São Paulo?



R - Uma impressão muito esquisita. Estava chovendo, um tempo escuro. Eu fiquei assim meio... mas eu sempre fui assim sem medo. Pra mim, São Manuel as coisa era grande. Agora eu vou em São Manuel, as coisa desse tamanhinho. Um dia a gente vai. Você entra numa estação de metrô é um mundo, a estação lá parece que é um mundão. Chega lá são aqueles barraquinhos, ficou pequeno o negócio aqui. As rua, fica tudo diferente, né?

P - E aí você pegou uma obra na Camargo Correa.



R - Isso.

P - E que obra que era essa?



R - Era ali na Estação da Luz. Até quando eu passo ali, eu vejo serviço que eu fiz ali. Aquelas boca de lobo, aquelas escadas da esquina da Tiradentes, tinha uma padaria, mas hoje está modificado. Mas eu lembro que eu fiz aquilo ali.

P - Toda vez que você passa ali...



R - Passo ali, eu lembro. É, já morei ali por perto, de vez em quando vinha ali dar uma olhada n’aonde eu tinha sofrido.

P - E aonde você foi morar, onde você arrumou moradia?



R - Não, moradia já tinha, ela tinha tudo.

P - A Camargo Correa?



R - Tinha o alojamento, tinha a comida, tinha tudo. Ela é muito rica, a Camargo Correa é muito rica. Dava do bom e do melhor pros trabalhadores dela.

P - E aí, você trabalhou nessa obra até quando mais ou menos?



R - Aí eu trabalhei acho que 3 anos. Aí depois comecei picar.

P - Picar é o que?



R - É 15, 20 dia num, outro dia no outro.

P - Como pedreiro?



R - Como pedreiro. Aí fui aprendendo outras coisas, era armador, só no serviço de obra mesmo, né? Aí cheguei até soldador, o último serviço meu foi soldador na Cosipa [Companhia Siderúrgica Paulista].

P - Ah, lá em Santos?



R - Mas eu não tinha cabeça. Não aproveitava nada, não. Era um olhar feio que dava pra mim e pronto, eu já estava indo embora.

P - Você não gostava.



R - Eu acho que eu vim virar gente, mesmo, um homem mesmo, com 30 anos. Não é que eu era briguento, é que eu não agüentava desaforo, e pra não brigar, eu saía.

P - Você ficava quieto e saía.



R - Ficava quieto e saía. Tinha vez que eu brigava. Mas batia boca pra mandar embora mesmo. Não tinha jeito.

P - Mas era uma época que era mais fácil arrumar emprego?



R - Ah, teve época eu trabalhava em duas firma. Na Cofap aqui em Pindamonhangaba, trabalhava de dia em uma e à noite em outra. Só pra, se precisar, pra fazer, aquele negócio de trabalhar do, trabalhar não, dar nó lá, né?

P - Por que dar nó?



R - Ah, porque eu não tinha cabeça, mesmo. Já pensou trabalhar em duas firmas no mesmo local.

P - De dia era uma firma e de noite era outra?



R - É. Na mesma área, mas era enorme a área lá, também, né? Era fogo, viu.

P - Carlos, quando que você passou a trabalhar com material reciclável?



R - Foi em 1980, que surgiu o desemprego. O desemprego pra mim vem desde lá, vem de 1980. Eu saí de uma firma aqui em Santos, na Cosipa e vim pra São Paulo. Aí em São Paulo me roubaram tudo, e eu fiquei na rua. Aí fui catar papel.

P - Como você teve a idéia?



R - A idéia foi que eu estava numa feira do Glicério. Terminava a feira, estava com fome, sobravam umas frutas. Falei: “é por aqui que eu vou embarcar” E sentei num cantinho lá. Estava lá esperando. Aí chegou um colega e começamos a bater papo. Estava estacionando carro e ele olhava os carros. De vez em quando, quando não tinha carro, ele vinha e sentava ali perto de mim, a gente começou a conversar. Aí ele começou a falar que ele trabalhava catando papel. Aí ele falou: “você não quer trabalhar amanhã junto comigo?” Falei: “vamos.” E comecei. Isso era em um caminhão velho que ficava ali na Baixada do Glicério.

P - Ele tinha o caminhão?



R - Não. O velho que ele trabalhava tinha esse caminhão. Aí ele me apresentou lá. A gente morava no caminhão, tudo.

P - Dormia?



R - Dormia e esse senhor fazia comida pra gente. Pronto. Daí, eu arrumei meu lugar e fiquei por três anos com ele.

P - Que tipo de material vocês catavam?



R - Sempre foi tudo material. Minha área foi aquela Bela Vista, Brigadeiro, Bexiga, quando eu comecei.

P - Vocês levavam pra onde?



R - Nós levava lá pra esse senhor. Ele nos pagava e vendia pra um grande aparista. Aparista é um que tem o depósito grande, que ele vem com o caminhão buscar monte. E o outro compra de picadinho, 1 quilo, 2 quilo.

P - E vocês ganhavam por quanto?



R - Por quilo. Dava pra tomar café.

P - Uma época difícil?



R - Não, não era. Aquele tempo não era difícil, não. Aquele tempo era bom. Era bom porque a gente arrumava muito material.

P - Tinha essa consciência de começar a reciclagem?



R - Não. Não tinha consciência, não. Bem pouquinho mesmo.

P - Mas era mais fácil pra arrumar material?



R - Era mais fácil de arrumar material. Aí, vai divulgando, o desemprego, né? Agora está aglomerado, mesmo. Tem muita gente vivendo disso. E dá, que a gente também escolhia o que queria levar. Hoje não pode escolher mais, tem que levar tudo. Naquele tempo a gente dizia assim: “isso aqui é mais valioso”

P - Que que valia mais naquela época?



R - Naquela época, valia mais era o papelão?

P - E hoje o que vale mais?



R - Hoje é a latinha. Todos os valiosos não se encontram mais.

P - E o papelão ficou...



R - O papelão sempre foi uma margem boa de trabalho. Ele é um material limpo, é leve, não é muito pesado, não é difícil de conhecer. Hoje não, hoje tem o plástico. O plástico é mais de 100 tipos de plástico pra gente ver qual é. Então a gente pega os melhor, os que a gente conhece mais, o tradicional, né?

P - Você trabalhou três anos com esse senhor no caminhão. E aí, o que aconteceu?



R - O que aconteceu é que eu fui aprendendo. Aí já saí dele, fui pra outro. Aí também ele perdeu o ponto que a prefeitura tirou ele, o lugar que ele ficava ali na [rua] Dr. Lund. Aí, a gente foi evoluindo, aonde eu conheci a Comunidade dos Sofredores de Rua, que era bem próximo ali no Glicério. Comecei a freqüentar a casa pra banho, essas coisas, daí surgiu a idéia dessa Associação dos Catadores de Papel.

P - Quem que coordenava essa casa, como é que era?



R - Era as Oblatas do São Bento. É ligado à Igreja Católica. À Arquidiocese.

P - E aí lá vocês conversando, reunindo, que...



R - Reunindo, era mais catador de papel que tinha ali. Então, todo fim de ano tinha uma missão, que era a missão dos catadores de rua, isso depois de eu ter conhecido bastante eles, já ter passado sair da rua, passar por um lugar pra morar, sendo casa abandonada, mas a gente já tinha um peito por trás, né? Eram várias pessoas que moravam. E assim, já tinha uma conversa e uma luta de moradia, né? Daí a gente já começou a fazer, e tinha essa festa de fim de ano que a gente fazia com os catadores de rua, que era três dias na rua, ou em salão, o que a gente arrumasse. E não tinha dinheiro, o dinheiro saía da gente mesmo, dos catadores de rua. Aí foi aonde que nasceu a Coopamare [Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis].

P - Mas como é que era essa festa?



R - A festa era comer, beber, rezar, protestar na rua, reivindicar. Passeata saía de um lugar pro outro, né? A gente fez passeata, no início da associação, de carroça, dentro da missão, como protesto, coloquemos os carroceiros, os catadores de papel.

P - Por que? O pessoal não gostava dos carroceiros?



R - Não, era muito discriminado.

P - Mas, por que, por causa do trânsito?



R - Não, é porque, veja só, os cara saía da cadeia, e naquele tempo, acho que, não sei se agora faz isso, acho que não faz mais, né? Acho que furava a carteira, manchava o documento do cara. E a única opção era aquilo, né? Então quem era catador de papel aquela época era tudo cadeeiro. Então tinha essa discriminação. Não todos, né? Não todos.

P - Não é o seu caso?



R - Não, não era o caso de muitos, que na época eram catador e trabalhavam com material reciclável. Mas, é uma opção. Era um serviço que tinha mais fácil, né? Que isso você chegar na rua e fazer catar papel e arrumar dinheiro. Fácil, né? Você ia numa obra nem a obra pegava o cara pra trabalhar na hora que mostrava o documento. Então, era um serviço meio discriminado.

P - E aí vocês fizeram essas passeatas?



R - E aí a gente fazia essa missão e dentro dessas missão, a gente fazia reivindicação, que era moradia, um monte de reivindicação que existe por aí. A gente fazia através dessa missão.

P - E como que surgiu a idéia de montar a associação?



R - Surgiu dentro da missão, que a missão, a gente precisava arrumar dinheiro. E como a gente arrumava dinheiro era na Comunidade dos Sofredores de Rua, mas os Sofredores de Rua ele tem um jeito de sobreviver, ele mora na rua, dorme na rua, mas durante o dia ele faz alguma coisa pra sobreviver. Ou pede, ou vende alguma coisa, olha um carro, sei lá, alguma atividade ele faz.

P - Ele dorme na rua?



R - Ele dorme na rua, mora na rua. Mas durante o dia ele faz alguma coisa pra sobreviver, né? Então tinha o vendedor de café, o olhador de carro, o marreteiro, um monte de coisinha que faziam na rua, e tinha o catador de papel. Então a gente juntava todo esse pessoal, cada um dava uma contribuição. O que olhava carro, falava: “vou olhar carro hoje, e o dinheiro que eu ganhar hoje, vai pro fundo dessa missão.” O que vendia, marretava na rua falava “vou trabalhar o dia vendendo, eu tiro o meu dinheiro que eu gastei, a sobra eu dou pra missão.” E assim foi indo. E o catador de papel falou: “então nós vamos fazer o nosso grupo.” Era um grupo de 10 pessoas, onde a gente fazia, dava uma viagem pra gente e uma viagem a gente guardava num salão. Num salão não, numa casa velha, abandonada, ali no Glicério. E a gente guardava pra esse dia da missão. Sem pesar, sem nada, só jogava lá, arrumava e jogava lá. Reciclável. Aí chegou no dia, um dia antes da missão, a gente precisava arrumar o dinheiro, a gente vendeu o material. Aí recebemos tudo, colocamos lá na missão.

P - Você lembra quanto deu?



R - Me parece que foi 63 cruzeiro.

P - Na época?



R - Mil cruzeiro, mil.

P - Que ano que era isso?



R - Era em 83, era mil cruzeiros.



R - Até esquece o dinheiro. Esquece, mesmo. Eu mesmo. Eu acho esse dinheiro velho no, agora, eu fico lembrando de que tempo era aquele dinheiro. Eu lembro de 1 conto, 1 barão. Então, era por aí. Me parece que foi, não sei se a Dona Regina tem esses dado lá ainda, mas eu acho que foi 63 cruzeiros que deu o nosso.

P - E é, foi Dona Regina que coordenava a missão?



R - Junto. Aí, nessa época eu já era mais, já estava com mais juízo, ajudava também. Fazia parte também.

P - Você já tinha parado de beber?



R - Já tinha.

P - Como que você decidiu parar de beber?



R - Não sei.

P - Do nada assim?



R - Do nada, não posso saber. Até hoje, de vez em quando, ainda eu bebo, mas eu fiquei 10 anos sem colocar álcool na boca.

P - Mas por esforço próprio ou você procurou ajuda?



R - Não, não procurei ajuda. Agora, depois desses 10 anos, aí de vez em quando eu preciso de ajuda.

P - É, porque não é fácil, né?



R - Não é fácil. Então, e assim foi, aí fez a missão. Fizeram, pegamos essa grana toda, juntou a grana, fizemos a missão. Terminou a missão, aí vamos fazer a avaliação: o quanto deu, o que gastou, o que não gastou, o que sobrou, se sobrou alguma coisa. Me parece que não tinha sobrado nada, né? Ainda tinha posto, as igrejas tinha posto algum dinheiro. E o nosso grupo foi o que deu mais, o catador de papel.

P - É mesmo?



R - Nós éramos em 10 catadores. E naquele momento mesmo, que a gente se reuniu lá, os outros grupos, que a gente prestou conta, pra quem fez marreteiro, pra quem vendeu café, quem olhou carro, tudo, o nosso foi o que deu mais. Participou mais, com mais dinheiro. E nesse dia mesmo, a gente não desfez, os outro se desfez, mas a gente ficou junto. Porque se nós fizemos pra missão, nós não fazíamos pra gente. Aí veio a Associação dos Catadores de Papel. E na época, em 85, 86, foi o Jânio, né? 85 ele foi eleito?

P - Acho que foi.



R - Quando foi 86, ele falou que o lixo era dele. Aí nós fizemos a Associação dos Catadores de Papel pra brigar com ele e ganhamos.

P - Como é que foi essa luta? Conta pra gente.



R - A luta [foi] que ele chegou e falou. Porque tinha essa atividade na rua. E ele falou que lixo era dele, ninguém podia pôr a mão. Aí, imediatamente, a gente fundou a Associação dos Catadores. A gente já estava no meio do caminho, mesmo, na luta já. Conversado já e rapidinho fizemos a Associação dos Catadores, lutamos com ele, pra ganhar dele, e ganhamos. E ainda ele prendeu várias carroças. Ele não queria as carroças, não queria que ninguém mexesse no lixo. E a gente conseguiu. E daí, em 86, 87, 88, 89, a gente fundou a Coopamare [Cooperativa de Catadores Autônomos de Papel, Aparas e Materiais Reaproveitáveis].

P - Carlos, e nessa época antes, 86, 87, vocês juntavam papelão, as coisas recicláveis, vocês levavam pra onde?



R - Aí a gente já fazia, já tinha um grupo, né depois que a gente...

P - Esses 10.



R - Esses 10. Aí esses 10 já começaram a abrir. Veio um carrinho, dois. A gente tinha 10% fundo de uma coisa, fundo de outra, fundo de carroça, fundo não sei de quê. Tudo a gente tinha fundo pra fazer alguma coisa. E isso resolveu, que a gente terminou com 10 carroça, depois começou vir projeto, e o negócio cresceu, descambando, mesmo.

P - E vocês tiveram apoio de quem, além da Casa do Sofredor, da Irmã Regina, quem mais?



R - Na hora de formar a Coopamare mesmo, foi o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico]. O Paulo de Tarso, um que mora aqui, lugar que ele mora é Vila Madalena. Então, ele foi lá e falou: “porque vocês já estão juntos, por que não fazer uma cooperativa? Já é uma cooperativa.” Daí foi aonde que a gente fez a cooperativa. Daí fizemos cooperativa, fundamos a cooperativa na época do Collor. Acabamos de fundar a cooperativa, o Collor... Lá no Senacop [Secretaria Nacional de Cooperativismo], que era um grupo que formava cooperativa, onde tinha grupo de trabalhador, eles iam lá e faziam formação. Mandava técnico, coisa e tal, pra formar... Foi a gente acabar de formar a Coopamare, eles foram lá e zuum, o Collor, acabou com esse lugar. Mas aí já estava formado.

P - E onde que é a sede da Coopamare?



R - A sede da Coopamare é em Pinheiros. Mas foi lá no Glicério. A primeira foi no Glicério. Agora é aqui em Pinheiros.

P - Ali perto do viaduto da Sumaré?



R - Isso.

P - Me fala como que é o dia-a-dia de um catador? Ele cata, leva pra cooperativa, como que é hoje, como que se organiza o trabalho?



R - Sempre foi, né? O catador ele sai pra rua, catando. E quando é à tarde, ou meio-dia, a hora que ele encheu o carrinho, ele traz pra cooperativa. E pesa aquele material, e coloca lá no comum. Ou recebe na hora, ou recebe por mês.

P - É? E aí a cooperativa, ela tem prensa, como que é isso?



R - Tem prensa, tem balança, tem contabilidade, tem tudo.

P - E aí vocês mandam pra onde esse material?



R - Aí a gente manda, parte, tem material que a gente manda pra fábrica direto. E tem material que a gente manda pros aparistas, ainda.

P - Aparista? O que é isso?



R - Aparista é um grande depósito. Que ele vem coloca os contêineres dele lá. Então, ele já ganha uma grana em cima, ele já faz fardo maior.

P - Como foi o começo da cooperativa? Vocês eram em quantas pessoas?



R - O comecinho da cooperativa foi uma Associação de Catadores de Papel, depois que veio a cooperativa. Primeiro foi um grupo de trabalho, depois Associação dos Catadores de Papel e depois a Coopamare, a cooperativa.

P - Enquanto associação vocês faziam o que?



R - Enquanto associação a gente só associava os catadores. Era sócio da associação pra mais pra reivindicar e também trabalhar junto. Quando a gente formou a associação a gente já começou a abrir, pra vir mais. Mas naquele tempo era um, digamos quase igual, então, as pessoas conhecidas que freqüentavam a casa, era sócio, mas não operava com a gente, né? Uns operavam, outros não.

P - Vocês chamavam?



R - Chamava. Abrimos a porta, então vinha bastante gente, mas é, associado, não associado, pra começar a ser sócio.

P - Ser associado era pra reivindicar?



R - Era pra reivindicar. É. Pra fazer membro desse grupo. E aí pra formar a cooperativa, a gente formou com 25.

P - Quando veio a idéia da cooperativa?



R - Ah, quando veio a idéia da cooperativa foi um negócio que a gente ficou com medo, né? A gente tinha medo, que negócio estranho, o cara vem aqui tirar proveito. E a gente já tinha uma certa...

P - Era do atravessador que vocês tinham medo?



R - Não, a gente tinha medo era da política mesmo. Política mesmo que o cara está interessado, ou atravessador, ou um fabricante. Aí até o cara dizer que ele era o Paulo de Tarso, que é uma pessoa maravilhosa, que ele é. Então foi difícil. Até hoje a gente olha um pro outro fala isso, morre de dar risada. Ele também dá risada. Difícil reconhecer,né? Que ele estava de terno, né?

P - Conta como que foi esse encontro com o Paulo de Tarso.



R - Ele marcou com a gente, né? Ele descobriu, eu não sei que jeito, ele descobriu a gente lá. Então, ele é uma pessoa muito dedicado a isso, né? Aí ele foi à procura da gente. E a gente, nos primeiros dias, a gente não quis se encontrar com ele. Ele insistiu. Então, vamos ter um encontro com esse cara. Quando ele chegou lá a gente assustou, né?

P - De terno, gravata.



R - Terno, gravata. Ele falou que não era aquilo, o terno e a gravata era o uniforme dele de trabalho, né? Não era mesmo. A gente já tinha um certo receio. Aí mesmo assim a gente foi conversando, conversando, ele acabou conquistando. E a gente começou a trabalhar junto.

P - E o que ele falava pra vocês?



R - Ah, ele falava, o que ele dizia, é, o sentido da pessoa estar sozinho, em cooperativa, mostrou várias cooperativas que a Senacop tinha formado, que davam certo. Assim foi mostrando que o negócio dava certo, então a gente foi formando. Depois ele ficou na cooperativa um tempão. Ele ajudou a fazer projeto, ficou mesmo acompanhando de perto, mesmo. A gente pegou confiança nele, aí ele confiou na gente também. Foi um tempo bom que a gente trabalhou junto.

P - Agora vocês se encontram e dão risada daquele tempo.



R - É, dá risada do que aconteceu, né? Hoje ele está em Guarulhos, Secretário de Obras lá em Guarulhos.

P - Qual a diferença de trabalhar na Associação e na Cooperativa?



R - Olha, quase nenhuma, mas depois que fez, formamos a cooperativa, aí a associação ficou paralela, não morreu, não fechou não. Aí, pessoa é um sócio, mas está conhecendo o que é a cooperativa. É quase como um aluno que se matricula, pra depois ser um catador de papel, mesmo. Ele já é um catador. Pra ele descobrir os valores que ele têm, que não é só catar o papel, entregar aqui, pegar o dinheiro, enfiar no bolso e ir embora. Tem outras coisas mais, pra não ser isso, só pegar o dinheiro.

P - Que outras coisas são essas?



R - Ah, que outras coisas? Tem o lado humano, o lado familiar, ser junto, irmão um com o outro. Estar junto na luta. Não é eu vendi meu papel, entreguei aqui na cooperativa, vou embora. Vamos discutir o que é a cooperativa, vamos partilhar disso aqui. Isso daqui é meu. Não meu, nosso. É meu enquanto eu estou, quando eu não estou não é meu mais. Então é mais ou menos assim que a pessoa vai descobrindo.

P - Como é que funciona a cooperativa, tem essas reuniões, vocês discutem?



R - Discute. As reuniões são às quintas-feiras. E a gente discute, lava roupa suja. E recebe alguma pessoa nova, e passa pros novos também, que é uma coisa difícil passar isso.

P - Passar o que?



R - Passar o cooperativismo. Pessoa chega, talvez fica sócio, é um cooperado, mas a gente percebe que ele não entendeu, mesmo, o que é uma cooperativa. Depois ela fala que ela tem algum dono. Que nem “eu, já fui dono muito tempo da Coopamare”. Tem certas situações que você tem que ser dono mesmo pra até que me entenda, né? Tem que passar, porque senão a gente vai, ele vai falar, falar não, ele vai embora. Então, se é que você sendo dono ele vai ficar, então é bom que você seja um dono e ele fique, que daí você divulgar mais pra ele que você não é dono, aí ele vai achar que você não é o dono. Então melhor assim, né? Sou o dono, tá, tudo bem, então vamos continuar junto. Aí ele vai descobrir que eu não sou dono e continuou junto, está aí.

P - Todos são donos?



R - Todos são dono.

P - Você tem que fazer isso sempre?



R - Isso é o dia-a-dia da gente. O dia-a-dia da gente, mesmo, é a gente vendo que a pessoa não está entendendo, está entendendo que a gente é dono, que eu posso fazer. “Pô, mas vai lá no escritório, pô, faz os caras fazer alguma coisa pra mim.” Como que eu posso fazer? Deixa o cara pegar esse carro aqui, ir lá buscar um material pra mim. Não é, deve dar uma negada, ou uma cortada, mas o pessoal a gente bate testa fala: “olhe, essa autoridade que eu, se é que eu tenho, você tem também a mesma coisa sendo cooperado.” Mas a gente vê que não caiu a ficha direito. Mas é aquele negócio. “Pede, manda a secretária, lá, fazer alguma coisa pra mim, dar, emprestar um dinheiro pra mim.” Não sabe quanto tem lá, não sei o quê. Bate, isso bate testa o dia todo.

P - E como que é o seu cotidiano, você primeiro passa na cooperativa, ou primeiro você vai catar material reciclável?



R - Eu estou todo dia na cooperativa.

P - Você fica direto lá.



R - Direto, direto. Fazendo tudo, tudo, tudo. Hoje, o serviço de hoje. Cheguei fui fazer uma coleta em Pirituba e uma aqui na Pompéia. Então eu faço Pompéia, Pirituba e Lapa e vou embora. Então hoje deixaram pra fazer com a perua, hoje faço com a perua. Mas tem o carrinho meu, também, pra fazer com o carrinho. E chega 11 horas, cheguei lá 11 horas, a Célia: “vai vender a latinha até duas horas dá tempo.” Aí, peguei, carreguei a perua, fui entregar latinha, foi onde eu me atrasei.

P - Aí você veio pra cá.



R - Vim pra cá. Mas nisso já estava tendo uma reunião lá.

P - Carlos, o pessoal que trabalha com esse material reciclável, eles têm a noção de quanto isso é bom pra preservação do meio ambiente?



R - A gente tenta passar pra eles.

P - Carlos, qual você acha que é o papel do catador de material reciclável?



R - É, o catador do material, ele é um, ele está inserido na economia do país. É, supor assim pensando no todo, está envolvido. Porque olha o gasto que tem com caminhão, o pior não é o gasto, o pior é o aterro que é tem, até isso, sabe lá quando vai decompor esse plástico, esses materiais, né? É assim, é um monte de coisa, e não sabe, não podia nem dizer o que isso causa, né? Pra ele, está entregando o material, está recebendo o dinheiro dele e tchau.

P - Aí vocês fazem palestra?



R - Fazemos palestra, o valor que ele tem, o que ele merece, o que ele não merece. Para merecer o que ele precisar fazer, né? Também tem isso, é muito fácil só querer também.

P - Em relação ao meio ambiente o que vocês falam pra eles da importância do trabalho?



R - Ah, a gente fala que o catador está protegendo o meio ambiente. Assim, enterra as toneladas de material, ela podia ficar circulando mais, indo e vindo mais. Porque, vamos supor, faz o papel, enterra, joga no lixo, aí vai lá e corta as árvores. Nós não temos mais árvores, fazer papel, que hoje planta eucalipto. Então, vai fazer o que? Daqui uns dias não tem mais papel. Então o papel tem que girar, acho que pelo menos umas... Eu ainda vou fazer essa pergunta pros caras da Suzano, quanto gira um papel, um montante de papel, quanto ele. Uma árvore, vamos supor, corta ela, faz o papel, quando dá, quanto ela fica de tendo resistência ainda

P - Pra reciclar?



R - Isso. Ir reciclando, reciclando, reciclando, até quando ela vai perdendo a intensidade, né?

P - Vocês têm parceria com a Suzano?



R - Tem. A gente vende o material pra eles.

P - Ah, é? E eles fazem o papel reciclado?



R - Papelão. O reciclato. Agora lançaram agora, esse o ano 2002, esse papel no mercado, é mesmo desse daí, e ele é feito de papelão. E a preferência da Suzano é que seja material de cooperativa, já usado.

P - Você já viu o reciclato vendendo em loja?



R - O reciclato?

P - É.



R - Ó, eu não vi ainda, na loja, mas já tem.

P - Mas você já viu pronto, assim?



R - Já, nós temos, eles mandaram, né? É esse aqui, ó. A produção, eles mandam pra nós. Isso é o reciclato. Ele é feito de papelão. O papel branco é muito caro. Quer dizer, embora esse aqui saiu, acho que saiu mais caro do que o branco, mas é um, ele é caro pra vender, mas ele se torna mais barato porque não tem matéria prima, ele é girando.

P - E quando você vê um papel assim, você sabe que tem o trabalho seu, o que que você imagina? Você parou pra pensar nisso?



R - Não, eu não parei pra pensar nisso ainda não. Mas, assim, papel da gente de divulgação a gente já achou jogado no lixo. Então quando a gente acha no lixo, acha que já está bem...Quando a gente vê um material da gente, já deu fez volta, jogado no lixo, né? Dá um certo, não dá tristeza não. Dá alegria porque a pessoa vai ver que está passando mesmo por aí, né? Pra ele vir e voltar, ele andou pra caramba, voltar lá na Coopamare outra vez, né?

P - E vai ser reciclado de novo?



R - Vai ser reciclado de novo.

P - Como é que são esses materiais que vocês produzem pra mostrar pro pessoal o que vocês fazem?



R - A relação é mais com colégio, com condomínio. A gente tenta passar o que é, o que é a reciclagem, o que retorna. E pra eles, o reciclado, não retorna dinheiro pra eles. Retorna vida. Retorna economia. Às vezes quer vender o papel, né? “Vender, meu, o senhor não tem o salário?”. Os caras já está, de você separar e passar ele pra cooperativa ou pro cooperado na rua, você já está ganhando. “ah, mas porque eu estou ganhando?” Que hoje o cara pensa em ganhar é dinheiro, né? Não é só dinheiro que ganha. A gente ganha não vendo o material sendo enterrado, né? A gente ganha não vendo os rios ser poluído. É ganho, né? E ganha acho que muito mais que o dinheiro. Vale muito mais que dinheiro, um Tietê limpo, do que eu vendendo esse material pra você e você jogando ele lá no rio, ou um plástico. Então se eu não jogar ele lá, não queria ter um rio bonito, não é um ganho? Isso às vezes as pessoas não entendem, demora cair a ficha também, dessas pessoas, da alta. Ele quer ter lucro em cima. Só que o lucro dele tem que ser diferente. O lucro quem tem que ter em cima é quem trabalha com ele. Ele tem que ter o lucro de ter um rio mais limpo, uma luz melhor, uma água melhor, uma rua mais limpa, mais árvore. É isso.

P - Carlos, vocês têm parcerias com algumas entidades que têm coletores?



R - Tem. A gente tem parceria com a Siemens, já há uns 12 anos. É aqui, tem essa aqui da Lapa. E tem a da Mutim do escritório, né? E eles doam o material deles pra gente.

P - Doa direto?



R - Doa direto. Eu vou buscar, né? Então, vem misturado, o copinho, mas é tudo material reciclado. Mas eles têm essa parceria com a gente de ter esse cuidado de estar doando esse material pra gente. O Pão de Açúcar, uma loja. É por intermédio de uma entidade que cuida desse marketing do Pão de Açúcar aí. Então, a gente estava com uma loja, a gente brigou e ficou com ela. Essa aqui da Panamericana. Então, a gente ficou com aquela loja. As outras lojas de certo que faz, mas vai pra outras cooperativas.

P - Cada loja teria uma cooperativa?

R - Não, acho que todas as lojas têm que pôr uma cooperativa, só essa que a gente faz.

P - E dá um volume bom?



R - Dá um volume bom.

P - Como é que funciona o ponto, vocês se dividem, cada um vai buscar?



R - Não. Ponto a gente se divide, e o catador é conquista. O catador vai andando pela rua e vai conquistando. Dá pra fazer eu passar nessa rua aqui pegar um material aqui de vocês e eu pegar, quando passar outro companheiro e pegar o da frente lá.

P - Tem algum horário que é melhor pra pegar?



R - A hora do lixo, né? Seis horas da tarde. Sumaré é de manhã. Então a gente vai descobrindo, que cada bairro de Centro aqui e olha o horário que põe o lixo. Que na Sumaré, hoje é sexta? Então hoje é sexta, o Sumaré é bom. É bom pra andar, que vai achar as coisas.

P - E aqui em Pinheiros, que dia que é bom?



R - Pinheiros, é dia todo, né? É o dia todo e todo dia.

P - Por causa dos bares?



R - A Madalena parece que é segunda, quarta e sexta.

P - Que passa o lixo tradicional.



R - Isso, tradicional. E aí, é onde, vocês põe o lixo pra fora, é mais fácil pegar. Então tem que ter tudo isso daí, que horário vai pôr.

P - E os bares assim? Pegar de madrugada, vale a pena?



R - É mais é o vidro, né? É o vidro. E a gente pega, tem uns bares que a gente pega, os catadores pegam. Mas latinhas não.

P - Por que?



R - Porque todo mundo cata. Você vai lá, toma a cervejinha dele, na bolsa mesmo, ele enfiando a latinha. Passa dentro de um bar mesmo e fica. Quando não amassa dentro do bar, você está tomado o guaraná, o cara já está assim com a sacolinha dele. A latinha nem cai no chão, já vai.

P - Por que? Paga bem?



R - Não, não é que paga bem. Vamos supor, você está tomando um guaraná, você pode ir andando na rua e tomando o guaraná. Eles vão atrás de você. Você joga a latinha no chão, se você jogar, que ela bater no chão, ela não vai ficar ali 5 minutos. Vai passar uma pessoa ali catando. Ou o catador, ou ela mesmo: “ah não, estou juntando latinha.” Pega e leva embora. É assim. Ou o dono, mesmo, do restaurante junta, ou o garçom, o cozinheiro, sei lá.

P - E aí ele leva pra cooperativa?



R - Olha, ela vem pro mercado, né? Mas só que vem pouco, pra nós, pra cooperativa, talvez vá pra cooperativa, mas é assim, é uma coisa que sumiu, mesmo. Eu mesmo, se eu for andando pela rua, e ver uma latinha, eu vou catar e enfiar no bolso. Ou vou andar com ela na mão ou até encontrar um cara pra mim dar a latinha pra ele. Mas sei pra quem eu estou dando, né?

P - É a coisa mais disputada que tem?



R - É a mais disputada que tem. Não percebe, não? Olha na rua pra você ver só, o cara com a sacolinha na mão. É talvez, não é tão mal de situação, ou ele vê umas latinhas e um saco lá, abaixa e tira. Ou leva pra escola, sei lá. Mas vai entrar lá na fábrica.

P - Mas isso é uma consciência da população?



R - Não é uma consciência, tem gente que não precisa disso e pega, né? E tem muita gente que é consciência, né? Mas menos consciência do que... mais valores, mesmo. Mais pessoas pegam pra vender, mesmo.

P - Qual é a importância do seu trabalho?



R - Eu acho que é importante, eu fico contente de estar prestando aquele serviço. É, tanto tirando meu ganho, meu sustento, da minha família, como também sabendo que está no final dessas coisas que vai acontecer, a limpeza de rio, sabendo que eu estou contribuindo pra isso. Ajudando a natureza.

P - Você sustenta sua família?



R - Com certeza. Quase 20 anos. Não, tem três dela. Cinco.

P - Cinco? Tem cinco filhos?



R - Cinco. Mas já estão trabalhando já.

P - Mas eles trabalham com você?



R - Não.

P - Que área que eles estão?

P - Eles estão, tem um com 18, outro com 15, e a menina está com 18, menino está com 17. Já estão quase trabalhando já. Mas eu prefiro que eles estudem primeiro. Tem mais, tem um lá que eu estou pegando no pé dele agora, vamos fazer alguma coisa aí, ou...

P - Carlos, existe essa comunicação entre cooperativas, pelos catadores?



R - Surgiu a Coopamare. No surgimento da Coopamare, então surgiu várias cooperativas. E esses grupos de trabalho foram. A Coopamare é muito conhecida. E talvez a pessoa está aqui em Pinheiros, ela vai conhecer a Coopamare lá na Europa.

P - É mesmo?



R - “Mas eu estava lá na Europa e ouvi falar da Coopamare e a Coopamare está aqui perto de mim?” E sendo que aqui eu tenho um grupo, estou patinando com esse grupo aqui. Então, vai pra lá. Vai conhecer vocês lá, lá na Bahia. Pessoa está no trabalho aqui, está lá na Bahia, sai, surge o nome da Coopamare, então: “eu estou lá pertinho.” Então é por aí. Aí se espalhou mesmo, que hoje a gente está latino-americano já. Não está nem nacional mais. A gente fala nacional, mas já não é mais nacional. Nesse que teve agora em Caxias, o mapa cresceu, esse encontro nacional, né? Cresceu, veio a Argentina, veio Uruguai, Paraguai. Veio lá uns três ou quatro país fora.

P - Vão todos os catadores?



R - Já estão organizado, quer dizer, em parte.

P - Cooperativas, aí a cooperativa paga passagem, tudo isso?



R - Cooperativa, isso. Arruma dinheiro. Dá um jeito, eles brigam lá, arruma ônibus. O Uruguai deu pena deles, eles vieram sem comer. O ônibus quebrando, um ônibus velho.

P - É mesmo? Se você comparasse a situação do catador do Brasil, da Argentina, do Uruguai, quais são os principais pontos, que você lembra que falavam?



R - É tão desorganizado. É a política, né? Sempre a política está no meio, que não deixa, impede, né? Tem, outras vezes aqui, aqui, tem companheiros, tem ido em encontros aqui pra tentar juntar o catador, aqui pertinho, no interior aí. Tem um cara lá atrás que: “ó, fala muito aí, não, hein, fala muito aí não, hein.” Aqui, perto de São Paulo. Aí se veio a descobrir esse ano agora.

P - É mesmo?



R - A gente começou, juntar, juntar os catador. Um cara aparece, um atravessador ameaçando, tal.

P - Esse é o maior problema que vocês enfrentam?



R - É o maior problema. Não, o maior problema pra nós não é. A gente passa por cima.

P - Qual é a maior luta do movimento de catadores?



R - Ah, é tudo, né? Acho que a luta é o todo mesmo e tem que enfrentar, né? O que a gente reivindica é conhecimento do catador, o reconhecimento pelo poder público, isso a gente está conseguindo bem. Que o próprio catador pra não estar acontecendo isso, se junte mais, que não deixe ser levado um, um ter 20, 30 do lado dele, que seja tudo junto. Essas lutas que a gente tem por aí. É, estado pra estado muda, né? De um estado querer ser mais, não pode ser assim, tem que ser todo mundo unido. Mesmo se está fraquinho, aquele fraquinho tem lugar no meio dos movimentos grandes. Hoje existe Coopamare, através da Coopamare tem cooperativa que está maior do que a Coopamare, mais organizado, mais pra frente, com mais grana, mais equipamento. Não é por causa disso que a gente vai ficar, também: “pô, ensinamos eles e olha, lá?” Se precisar da gente, mesmo a gente estando menos, vamos ajudar. Está entendendo? Não tem essas coisas.

P - O que você sonha pra Coopamare? Imagina ela daqui a 20 anos? O que você quer que ela seja?



R - Não, eu realmente nem penso em Coopamare mais. Eu penso num movimento, mesmo, nacional, já é o nosso produto ser fabricado por nós mesmos.” Uma fábrica pra nós mesmo. Usina, tudo.

P - Ter todo o processo de reciclagem.



R - Todo o processo. Inventa um nome aí, que inclua todo mundo. E olha, esse papel aqui é feito pelos catadores de papel, coisa e tal. Não seja Coopamare, não seja a Recifran [Serviço Franciscano de Apoio à Reciclagem], não seja ninguém. Seja pelo movimento nacional dos catadores, uma fábrica em Pernambuco, não sei aonde aí. Seja nosso, mesmo. Não que seja Suzano lá, companhia Suzano. Mais ou menos isso que eu penso.

P - Vocês estão juntando, como é que vocês vão juntando dinheiro pra chegar a isso?



R - Não sei. Não sei como vai ser, mas, o projeto meu da minha cabeça é esse. E um dia o catador fala: “Essa fábrica aí é nossa”, ele mesmo andando com o carrinho na rua, vê um papelzinho: “aquilo veio da minha fábrica.”

P - Vamos torcer pra acontecer.



R - É. Isso eu sei que, em 10 pessoas deram um grupinho pensando como amanhã. Amanhã tem a missa de uma pessoa que idealizou isso e não chegou a ver o catador junto. Viu só uma partezinha em 87, por aí. Depois faleceu, coisa e tal. Então, amanhã é missa dela. Se ela estivesse aí pra ver hoje, nós está movimento nacional. Coisa que antes era o que? Quando ela faleceu tinha um grupo de catadores de papel. E ela queria ver todo mundo junto. Então essa idéia não pode morrer. Tem que ir pra frente, mesmo.

P - Quem que é essa pessoa?



R - É a Niluca.

P - Ela é de São Paulo?



R - Não. Ela é do Uruguai.

P - E ela que veio com essa idéia de ter o movimento?



R - Não, a idéia, mesmo, é de todos, né? Mas ela que é, quando surgiu a idéia, ela queria ver, ela falava sempre, queria ver os catadores de papel unido e ela viu muito pouco do que ela pensava. Ela pensava alto também. Ela se foi, mas não se acabou, não. O espírito continua. Tudo que ela queria ver, hoje se ela estivesse viva, ela estava vendo, né? Grupos de moradia, essa luta grande. Tudo.

P - Acha que ta faltando falar alguma coisa?

R - Não, acho que tá completo.

P - O que você achou de ter dado essa entrevista pra gente? O que você achou dessa experiência?



R - Pra mim, eu acho bom, que é, que eu mesmo, tem vezes que eu me inspiro em muitas coisa antiga, né? Então, eu comecei a olhar aquelas fotos lá, fiquei olhando assim. É isso, que a gente acha no lixo, né? Tinha uma coleção de jornal que o rio não era direitinho assim, o rio era torto. Eu acabei perdendo uma coleção, uma pilha, mesmo, de jornal, de 54, 49. Tinha muitas coisas que era manual ainda, eu acho que do jeito que o jornalista escrevia, ele publicava no jornal, então, aquilo pra mim, eu gosto de ver essas coisas. Está vendo o que está hoje, hoje passou, agora passou no computador e já sai o jornal amanhã. O rio está direitinho, uma linha só, e não é assim. Fico bravo quando criticam o prefeito, a prefeita, que seja, que dá enchente. A água entrou aqui na minha casa, mas por que a água entrou aí na sua casa? Porque aí é lugar dela. E a pessoa não aceita aquilo, que ali é o lugar da água. E vai morar na margem do rio, fazer o prédio ali na margem do rio, mas ele não viu antigamente como é que o rio andava, né? Aí fica pondo defeito que o bueiro está sujo. Aquele tempo não tinha bueiro, não tinha sujeira, não tinha nada, tinha só mato, não tinha? E água se empoçava lá pelo mato, mesmo. Não tem, isso eu fico, né? Mas, “ah, mas põe ela pra lá.” Põe ela pra lá, vai pra casa do vizinho. Quando encher, mesmo, que ela vai vir pra cá outra vez, né? Não tem jeito, é uma coisa que é fora do normal isso. A cidade de São Paulo, mesmo, podia ter uns, inventar aí um jeito de fazer as ruas com jeito de terra, um pedacinho de terra, um pedacinho de asfalto, tal. Não, mas está uma piscina, cada um quer tampar o seu espaço. Hoje São Paulo está uma casca, uma piscina e pronto. Água vai entrar na sua casa? Vai não, você pega e enfia uma paredinha ali. A água vai entrar na minha casa desse lado aqui, faz uma paredinha ali. Ah, a casa vai entrar... Daqui a pouco na rua ali tem água, em vez de a água entrar pras terra que era os porão mesmo, que a água entrava e ia embora pra terra, não vai mais, fica um rio ali dentro, aí fica todo mundo xingando: “ah, não posso sair...” Pô, você tampou o lugar da água, ela vai ficar aí, não é, não?

P - É.



R - Então, essas coisa que sempre eu vejo, as antiguidade, eu gosto de olhar. Casa velha, né? Quem nem ali no bairro do Glicério, mesmo, as casa, pode passar ali na rua do Estudante que tem um alçapãozinho, assim, bem feitinho. E um buraco, só que ele está tampado, ele está tampado e a casa lá dentro está cheia de entulho. E aquilo ali era o que? Era um buraco, a água que saía lá entrava dentro da terra, e os piso era de madeira.

P - Pra cima.



R - E pra cima, é. Quer dizer, às vezes você está lá dormindo na sua casa está cheio de água aqui, mas ela está indo embora pra terra. Agora não, todo mundo tampou. Então, a hora que chove, fica a água aí. Inteligência, né? Verdade, eu mesmo ajudei a tampar, jogar muito entulho naquelas casas velhas ali.

P - Quando você trabalhava nas construções?



R - É, mas eu pensava, eu sabia que eu estava fazendo, a gente estava tampando a água, tampando o lugar dela. Era tudo uma gradinha de ferro, pra não entrar bicho. Mas a água entrava, ela entrava e sumia na terra. Agora não, agora tudo tampado, mesmo, então a água tem que ficar à vontade mesmo, até o sol sumir.

P - Pra gente terminar, Carlos, queria que você mandasse uma mensagem pros outros catadores.



R - Ah, eu daria o conselho, que eu daria é que todos os catadores abraçassem essa luta, com vontade mesmo, que é pra melhora de todos, mesmo, e tanto si próprio, como pro planeta. Que o planeta ganha com isso, com o trabalho dos catadores.

P - Não é uma coisa isolada, né?



R - É, não é uma coisa isolada. Não só ele ganha, como tem o ganho dele, mas o planeta em si ganha mais, né? Então é essa que eu, mensagem que eu passaria pra catador, que ele pensasse mais no todo. Não só no dia-a-dia. É isso.

P - Está jóia. Obrigada pela entrevista, foi ótimo.


 


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