Discurso de abertura da Expocatadores 2010
Esta deve ser uma das perguntas mais indagadas ou simplesmente uma das mais caladas, pois para a maioria de nós, catadores e catadoras deste país, a resposta nem sempre condiz com a realidade em que vivemos, ou simplesmente, pela energia que nela aplicamos.E muitas vezes, dependendo do catador, não consegue nem mesmo responder ou achar uma resposta que seja satisfatória. Pois adquirimos uma grandeza tão grande, que a resposta, no mínimo, deve ser bem estruturada, objetiva e satisfatória.
Claro que sabemos que o Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR é importante para a nossa organização social, pois sabemos que antes do MNCR, nós catadores(a), não passávamos de verdadeiras marionetes nas mãos de políticos profissionais, ongueiros, governantes e dos patrões do lixo. Tivemos vários momentos em que estávamos sendo explorados, enganados e sequer, podíamos ver isso. Apenas sentir, aceitar e se calar.
Vamos relembrar um pouco, onde cada um de nós estávamos a 10 anos atrás.
Lembraremos que a maioria de nós viviamos em lixões, sem condições dignas de trabalho e expostos a todos os riscos impostos pela situação de exploração da nossa categoria, nessa época nem se ousava pensar que os catadores(as) eram uma categoria.
Até os meados do ano 2.000, nossa tarefa na cadeia produtiva era simplesmente catar, se perguntávamos para qualquer compa, você gosta de ser catador? Entre as várias respostas, o que se constatava era que a maioria de nós estavamos catando por falta de oportunidade de trabalho,marginalizados pelo mercado formal de trabalho em que poucos tem tudo e muitos quase nada, vindos do interior, negros, brancos, mulheres, crianças, idosos, analfabetos ou com pouca escolaridade, concentrados nas grandes metrópoles, a exemplo daqui de São Paulo, Belo Horizonte, Rio de Janeiro e tantas outras capitais . No momento que surgisse alguma oportunidade melhor, largava-se a profissão. Outros respondiam que nem sequer eram catadores, que simplesmente estavam catando só porque estavam desempregados. Isso remetia a grande questão, nós não queríamos ser catadores! Pois, somente desenvolviamos o trabalho pesado e mais sujo, que é a coleta, a separação e entregavamos tudo a algum sucateiro que nos pagava apenas algumas moedas, como se fossemos favorecidos pelos seus trocados. Além de levar toda a carga preconceituosa de uma sociedade capitalista, injusta e excludente.
Vocês conhecem o famoso “velho do saco” que vivia sujo e roubando crianças, era assim que nos viam.
De 20 anos pra cá, nós catadores começamos de forma voluntária a se organizar, de fato sabíamos que coletivamente poderíamos trabalhar menos e ganhar mais, mas tinha um grande problema, trabalhar em coletividade. Como costume, nossa profissão, que nascia a cerca de 50 anos atrás, a partir da necessidade de sobreviver. Isso porquer cada vez mais éramos excluídos e sem nenhum trabalho para fazer, então individualmente, começávamos a catar “lixo” que foi a fatia de bolo que este sistema nos deixou (caso não continuarmos na luta, até isso eles tiram de nós).
Quando, em 2001 conseguimos dar vida, cara, cor e rosto a nossa organização, que é o MNCR cujo nascimento foi cheio de problemas e poucas pessoas para resolve-los. Desde ai, já nasce de antemão um dos primeiros princípios que nos une, o do protagonismo de classe, juntamente com a auto-gestão/organização, pois os grandes desafios que tínhamos que encarar, nós mesmo tínhamos que vencer, e assim como eu, vários compas catadores aceitaram para si a tarefa, as superando nem que seja a partir de seu próprio sangue, suor e força de vontade.
O Brasil é um País, mas em termos de território se assemelha muito a um continente, um grande continente. Por esse motivo, tivemos que nos organizar de várias maneiras, sendo que algumas formas não eram injustas, não garantindo direitos e deveres iguais aos catadores organizados, o que nos remeteu a necessidade de criar as Bases de Acordo Nacional, como orientação geral para se organizar. Assim sendo, simplesmente por essa nossa criação, já teríamos a resposta a nossa pergunta inicial, pois a partir de sua implementação, os catadores conseguem, de forma individual, inserir-se no coletivo, passando assim a integrar uma Base Orgânica do MNCR (conceito próprio do MNCR).
Com o passar do tempo e nossas articulações a todo vapor, os desafios são grandes, vimos que vários grupos da sociedade, que até antes da existência do MNCR nos viravam as costas, hoje, das formas mais inimagináveis possíveis nos assediam para colocarem suas marcas e seus patrocínios.
Para nós, era o mesmo que colocar as mãos em cabos de alta tensão, sofrer a descarga elétrica, e ao final de tudo, não saber o que causou a descarga .E pior ainda, repetir e acreditar que isso é normal, olha mais um choque!
Com o passar do tempo, nós catadores, começamos a buscar mais a nossa organização, mais pela força de vontade de mudar, de organizar . Em nossa própria avaliação, a imagem que vinha, é que realmente, nascemos para ser explorados, enganados e nenhum ou ninguém podia mudar isso.
Por nossa falta de formação e informação, em todos os níveis, víamos que quanto mais tentávamos nos organizar, reunindo grupos de catadores com outros, mesmo os mais articulados também pensavam que era simplesmente perda de tempo e de dinheiro, pois quanto mais tempo passávamos nos articulando e nos reunindo, menos tempo passávamos trabalhando o que de certa forma, fazia com que a renda mensal baixasse, cada vez mais. A maioria de nós, não entendia sequer o momento, e acredito que nem o mais empenhado militante social pensaria que chegaríamos até aqui, mais fortes, mais grandes, mais organizados. É sempre assim, a gente é desse jeito, não acreditamos no novo, apoiamos e desconfiamos ao mesmo tempo...somos Brasileiros por excelência,
Nós precisávamos disso, corremos atrás, merecíamos mesmo, pois as dificuldades que estavam expostas a nossos olhos, já eram muitas naquele momento, parece que tudo apontava para isso, para a formação de um movimento, um movimento social, um movimento combativo e solidário, criando a independência dos catadores em relação aos ferros velhos, a governos e fortalecendo a autogestão dos catadores.
Lembro-me muito bem, das dificuldades que era, para reunir meia dúzia de catadores para fazer uma reunião que discutisse uma pauta nacional de catadores, era difícil mesmo, podem acreditar. Acredito que foi o momento mais difícil, pois éramos nós mesmos, com esta criança no colo e tínhamos que dar jeito, tudo, tudo era difícil, difícil mesmo. Foram muitas lutas, muitas ruas tomadas, muitas prefeituras ocupadas, muitas portas fechadas que tivemos que abrir. Tudo o que temos conquistado foi através da luta e da solidariedade. Pois somos povo e nos realizamos junto aos outros movimentos desse mesmo povo. Princípios que norteiam a nossa organização. Mesmo com todas as condições adversas, chegamos a ser presos, fomos perseguidos, e muitas vezes ainda somos, porque nos mantemos firmes em nosso propósito de justiça e de liberdade. Isso tudo só faz fortalecer cada vez mais nossa luta. Se nós catadores(as) éramos chamados de lixeiro, hoje gerimos empreendimentos autogestionários, dirigimos nossos próprios veículos de coleta e logística de materiais recicláveis, conquistamos políticas publicas de inclusão e de valorização de nossa categoria. No entanto, muitos oportunistas buscam não reconhecer o movimento, mas querem se beneficiar das suas conquistas forjadas no suor do dia-a-dia dos nossos companheiros.
Porem, nunca falamos que a luta seria fácil. Permanecer e durar no tempo é o que vai garantir nossa vitoria sobre todas essas condições injustas impostas pelos inimigos que ganham e se promovem em cima da miséria alheia. Temos muitos desafios pela frente...
Vida longa ao MNCR!!!! Viva os dez anos!!!! Porque quem tem medo da luta não nasce!!! Que venham mais dez, vinte, trinta anos!!! Viva os catadores e as catadores do mundo!!!