Autogestão: Catador é profissão, catador não tem patrão
Foi publicada no mês de Março na
Revista Reciclagem Moderna, uma revista voltada para o mercado de sucatas e
comerciantes dessa área, a reportagem de capa intitulada “Cooperativas versus
comerciantes de recicláveis, uma luta justa?”.
A matéria induz a idéia que haja uma disputa entre as cooperativas de
catadores de materiais recicláveis e os comerciantes de sucatas, no entanto a
afirmação, na opinião do Movimento Nacional dos Catadores (MNCR), não é
verdadeira, por um motivo simples: esses
dois setores caracterizam mercados e
atividades distintas.
As cooperativas e associações de
catadores de materiais recicláveis prestam um serviço público à sociedade;
estão constituídas legalmente enquanto organizações civis sem fins lucrativos,
portanto, seu fim ultimo não é o lucro, como é o caso das empresas de
comercialização de materiais. Trabalham
com a finalidade de prestação de serviços a sociedade e ao meio ambiente. Essa
distinção evidencia que não há competição, pois a lógica de funcionamento é
distinta uma vez que as organizações de catadores trabalham hoje, além da
coleta propriamente dita, também a educação ambiental, o que inclui o esforço
para diminuição da geração de resíduos na natureza. A coleta porta-a-porta, a
interação com a comunidade e a capacitação constante de seus cooperados e
associados são formas de garantir novo
sentido a atividade de catação e a função do catador como trabalhador e agente
ambiental.
Apesar de não haver uma
competição entre os dois ramos, é evidente que há um conflito de interesses,
algo que explica o fato da Revista atacar as cooperativas de catadores, pois
procuram organizar-se no sentido de eliminar os atravessadores que pagam baixos
preços pelo material coletado e vender diretamente à empresas especializadas e
a industria de reciclagem. Esse tipo de estratégia diminui o lucro aos
atravessadores, contudo não chega a ameaçar a atividade desses comerciantes,
pois o número de organizações de catadores ainda é pequeno.
O mercado da reciclagem trabalha
hoje no Brasil com o que chamamos de cadeia produtiva suja, ou seja, uma cadeia
que é sustentada pelo trabalho precarizado de catadores que exercem a atividade
sem qualquer vinculo empregatício vendendo materiais recicláveis para
ferros-velhos, pequenos, médios e até redes de comercio de sucata. Além do
trabalho precarizado, há casos de trabalhos análogos a escravidão, servidão por
divida, aluguel carroças e trabalho infantil. Situações que violam os direitos
humanos dos catadores, um dilema moral do setor da reciclagem que no Brasil,
apesar que ser mencionado como um dos maiores do mundo, ainda é mantido pela exploração desses
trabalhadores.
A alternativa a essa situação
insustentável é o incentivo a auto-organização autônoma dos catadores por meio
de cooperativas e associações que procuram especializar esses trabalhadores e
dar regularidade a atividade de catação. Como qualquer setor produtivo que
abastece a indústria brasileira as organizações de catadores precisam de
infra-estrutura para tornar o trabalho regular e de qualidade, além de aumentar
a capacidade de processamento de resíduos agregando novos catadores, formalizando novos postos de trabalho no país.
Já é mais que provado a
capacidade das cooperativas e associações de catadores em gerar trabalho e
renda, combinado a inclusão social de pessoas excluídas do mercado de trabalho
formal com políticas públicas de preservação do meio ambiente. São estudos
acadêmicos e pesquisas socioeconômicas que tem mostrado a eficiência dessas
organizações frente a problemática da geração de resíduos nas grande cidades,
assim como alternativa a criação de lixões a céu aberto e superlotação de
aterros sanitários.
A reportagem da Revista denuncia
a destinação de 31 milhões anuais para subsidiar as 15 cooperativas de São
Paulo, no entanto não cita que em toda a cidade de São Paulo existem 94 grupos
de catadores em atividade que realizam o trabalho de coleta sem subsidio
público e de modo precário. O dinheiro investido nas 15 centrais de triagem possibilita
o desvio de resíduos recicláveis para os aterros sanitários. Iniciativas como essa que economizam recurso
público que seria pago com uma quantidade maior de resíduos destinados aos
aterros, sua super lotação e conseqüentemente a criação de novos aterros. O investimento municipal é a contra-partida de
financiamento do programa de coleta seletiva que, no entanto, não consegue
atender toda a cidade de São Paulo.
O investimento público do BNDES
visa financiar infra-estrutura para cooperativas de catadores, diferente do
recurso municipal que é utilizado para manutenção das instalações das centrais municipais
de triagem. A reportagem não relata o fato da prefeitura de São Paulo pagar também
os caminhões de empresas privadas para realizar a coleta, uma grande economia
poderia ser feita apenas com a compra de caminhões para essas organizações.
Um número relativo de iniciativas
em andamento visa apoiar o trabalho realizado pelas cooperativas, no entanto
essas ações ainda não são suficientes para manter a estabilidade e melhorar de
modo amplo a situação dos catadores. É por esse motivo que o MNCR iniciou sim
uma campanha coordenada nacionalmente no sentido de que as prefeituras
contratem as organizações de catadores e paguem pelos serviços que elas prestam
a sociedade de forma gratuita. Em diversas cidades já conquistamos esse
direito, onde os serviços de coleta seletiva são modelos nacionais enquanto iniciativas
bem sucedidas.
Para
finalizar, referente às perguntas provocativas da revista, pontuamos que assim
como os catadores, diversos comerciantes de sucata abandonaram suas funções e
faliram com os efeitos da crise econômica. Curiosamente foram exatamente as
organizações que receberam investimentos em infra-estrutura ou que têm parceria
com Prefeitura que demonstraram maior disposição em enfrentar a crise sem a
ameaça de interrupção das atividades.
Por essa razão é que acreditamos fielmente que o incentivo a
auto-organização dos catadores é a única saída para tornar o trabalho digno e
sustentável, só assim será possível gerar trabalho e renda, fazer inclusão
social de fato, abastecer a cadeia produtiva de recicláveis de maneira justa,
preservar o meio ambiente e combater a
exploração.