Catadores serão alfabetizados em Santa Cruz do Sul - RS

O educador e pedagogo Paulo Freire disse que a alfabetização é muito mais do que o ato de ler e escrever. É a habilidade de ler e interpretar o mundo. E qual aptidão é capaz de tornar o homem mais sábio sobre suas ações do que essa? Pois na noite dessa terça-feira, 16, seis integrantes da Cooperativa de Catadores e Recicladores de Santa Cruz do Sul (Coomcat) participaram de uma aula inaugural e deram o primeiro passo em direção à descoberta da palavra escrita. Ou, como fez questão de afirmar uma das líderes do movimento, à fuga da escuridão.
“Nunca é tarde. A vida fica escura quando não sabemos ler”, disse a coordenadora de produção da Coomcat, Angela Maria Nunes. A nova estudante do Núcleo Municipal de Educação de Jovens e Adultos (Cemeja) foi a primeira do grupo a se inscrever no projeto Reciclando o letramento para uma gestão autônoma, iniciativa da Coomcat com apoio da Secretaria de Educação.

Agora, munida de sua mochila azul nas costas, Angela afirma aos quatro ventos que vai recuperar o conhecimento que perdeu. “Sou filha de uma família com 14 irmãos. Tive que largar tudo para ajudar a minha mãe. Não tenho vergonha de dizer que não sei ler.” Vergonha seria, acredita ela, se não substituísse o sofá da sala pelo manuseio do caderno. “Por enquanto, eu vou usar só o lápis no papel. Dá para apagar e fazer de novo. Depois, quando eu aprender, vou usar canetas. Vão ser muitas canetas.”


Do outro lado da sala, Odete Oliveira dos Santos, 45 anos, almeja mudar sua rotina em casa. Ela promete chegar da aula, pegar um livro de histórias e contá-las com toda a interpretação que ainda não lhe é acessível para a filha de 3 anos. “Hoje eu leio as primeiras palavras, paro para pensar e aí conto para ela.” Mas nessa terça à noite, quase 40 anos depois de ter abandonado os estudos, a catadora ressignificou o pouco tempo em que teve acesso à escola, deixou para trás o medo de errar e investiu na força de vontade, necessário para quem se alfabetiza na vida adulta. “Agora eu vou poder ler histórias para a vida toda”, afirmou, feliz.
As duas catadoras, que já fazem a diferença reciclando, farão agora a diferença em suas próprias vidas. Mas, para isso, prometem andar armadas. Estarão protegidas pelos materiais escolares e já se  mostram favoráveis à proposta da ativista paquistanesa Malala Yousafzai: tornar os livros e as canetas as suas melhores armas.
Projeto incentiva leitura crítica e autogestão
O assessor da Associação Nacional dos Catadores e Catadoras de Materiais Recicláveis (Ancat), Uilian Mendes, explica que o projeto Reciclando o letramento para uma gestão autônoma tem o objetivo de aproximar a educação dos cooperados e auxiliá-los a demonstrar ainda mais autonomia à frente da cooperativa. “Essa iniciativa é para que eles tenham opinião crítica e apresentem condições de fazer a autogestão da Coomcat, descartando assim a necessidade de dependermos de outras instituições”, ressalta.

Satisfeito com a participação dos catadores, Mendes, que também atua como coordenador de coleta seletiva, acrescenta que o objetivo é levar essa iniciativa para outros municípios da região. “Essa ideia partiu deles e é por eles que vamos à luta e buscaremos mais avanços para a reciclagem popular”, salienta. Os catadores da Coomcat já sabem: independente do tipo de avanço a ser conquistado, é necessário educação. E não existe educação sem esforço individual e coletivo.


Saiba Mais

Conforme a coordenadora do Cemeja, Carla Fraga, para ser acessível à realidade dos catadores, foi necessário elaborar um projeto com turnos adaptados. Em conversa com os líderes da Coomcat, ficou decidido que as aulas seriam oferecidas em dois dias da semana – terça e quinta –, das 19 às 21h30. “Quando a professora Andiara Rauber observar que os alunos estarão aptos a ler, escrever e a fazer cálculos básicos de matemática, farão uma prova – cada um no seu tempo – para testar os conhecimentos.”
Além da turma que começou a ser alfabetizada nesta terça-feira, outros dois grupos farão parte do projeto de educação. “Quatorze alunos vão ampliar o letramento e passarão por exames de certificação do ensino fundamental em novembro.” Já para o ano que vem, os catadores participarão de um projeto de inclusão digital com acesso a cursos de informática.