‘Vai ter catador doutor, sim senhor’: como Alex chegou à UFRGS depois de 20 anos sem estudar
Tem uma história que Alex Cardoso conta para exemplificar o papel que a reciclagem teve em sua vida, uma relação que, sendo filho de pais catadores, começa antes mesmo de nascer. Nessa história, ele tinha apenas dois meses. O pai, seu Alceu Cardoso, e a mãe, Tânia Maria, subiam a Av. Borges de Medeiros, no Centro de Porto Alegre, puxando o carrinho que levava o material coletado no dia. De repente, uma caixa de papelão se desprende e cai no chão. Tânia alerta ao marido, que responde. “Estamos com o carrinho cheio, deixa para lá, vamos embora”. Mas ela bate o pé e de teimosa vai atrás da caixa, afinal, cada uma delas é resultado de trabalho e faz falta, sim senhor. Foi a sorte de Alex. Como não podiam parar de trabalhar, Tânia e o seu Cardoso o levavam junto desde muito pequeno no carrinho, sempre dentro de uma das caixas. Naquele dia, dentro daquela que caiu, enrolado em um cobertor, ele dormia.
A realidade de um catador é o trabalho nas ruas, sem trégua, faça chuva ou sol. Para um filho de catadores, a lógica era que o destino também fosse puxar o seu próprio carrinho. E assim foi com Alex. Permaneceu na escola apenas até a 6ª série. “Na minha vida, o trabalho superou a escola. Apesar de meus pais sempre me incentivarem a estudar – às vezes, com o chinelo -, aos poucos, trabalhar virou a prioridade”, diz.
Alex tinha 15 anos quando largou a escola em definitivo. Aos 16, teve a primeira filha. Com mais uma boca a alimentar, aí sim que não teria como voltar a estudar. Ficaria 20 anos longe dos bancos escolares. Mas aprendeu muito com a vida.
O trabalho com a reciclagem o colocou no caminho dos movimentos sociais. Da Cooperativa dos Catadores de Materiais Recicláveis do Loteamento Cavalhada (ASCAT), passando pela coordenação do Fórum de Catadores de Porto Alegre (FCPOA) e pelo Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR), o lixo levou Alex longe. Em 2016, participou com textos de sua autoria em dois livros, “Crônicas da Resistência” e “A Luta Continua”, entregues em mãos à presidenta Dilma Rousseff e ao ex-presidente Lula. O trabalho na militância social e pela reciclagem de resíduos fez com que fosse convidado para dar palestras em diversas universidades, inclusive fora do País.
“Olha, fui em várias, quantas vezes na UFRGS, na PUC, na UFSM, Ufpel, UPF, UFF, e tantas outras do Brasil. Fui em outras mais longe, na Argentina, a Universidade Nacional de Lujan. Fui até nos EUA, na Universidade da Califórnia, em Berkeley, pertinho de São Francisco, da Golden Gate, que leva à famosa ilha de Alcatraz. Visitei, na Índia, a Universidade dos Pés Descalços, França, muitos lugares”, diz.
Foi muito ouvido por doutores e outras pessoas com “latifúndios” de títulos. “Mas sempre via aquele olhar julgador quando respondia que tinha apenas o ensino fundamental incompleto”, conta. Era uma angústia que sentia com frequência, até em atos mais singelos, como preencher um currículo ou uma ficha cadastral. “Em muitos deles eu abria um ‘quadradinho’ para escrever: 6ª série. Sempre fui realista e isso me dava medo. Eu sabia que não era bom, me sentia mal, mas estava sem reação”.
Chegou um momento que a faculdade da vida já não era mais suficiente para Alex. Cansara de ouvir que era inteligente, que não precisava estudar, enquanto sentia que faltava alguma coisa. Como poderia cobrar dos filhos assiduidade na escola se não fizera mais do que a 6ª série? Há quatro anos, reuniu forças e voltou as bancos escolares. “Precisava fazer isso, por mim, pelos meus filhos e pela companheirada”.
Sem deixar o trabalho e o movimento social de lado — já integrava o MNCR, tendo uma agenda de organização do movimento pelo País –, se matriculou na escola Neusa Goulart Brizola, localizada no loteamento Cavalhada, a menos de 100 m de sua casa, na zona sul de Porto Alegre. O objetivo inicial era concluir o Fundamental pelo Ensino de Jovens e Adultos (EJA). Concluiu o 6º, o 7º, o 8º e o 9º ano em 2015.
Ao final do ano, fez sua primeira colação de grau. Não sem antes se envolver em um movimento de luta para que a comunidade não perdesse as turmas do EJA por uma decisão da Secretaria Municipal de Educação. Alex deu entrevista para o Sul21 sobre o tema na época. Estava revoltado com o fechamento da turma. Para ele, não faria diferença, precisaria procurar outra escola para fazer o Ensino Médio. Mas e o resto da comunidade, que precisaria se deslocar para outra região da cidade para continuar os estudos?
“As pessoas que já têm dificuldade de acompanhar as aulas não conseguirão mais ir para outra escola.Vão ter que gastar com passagem, com deslocamento, então preferem desistir. A escola estando perto de casa traz algum conforto, como no meu caso, que passados 20 anos consegui retornar à escola”, disse à época.
A batalha foi perdida e as turmas do EJA fechadas. Alex seguiu adiante. Em 2016, fez o 1º e o 2º anos no Colégio Estadual Cônego Paulo de Nadal. Os conteúdos começaram a ficar mais complicados para quem tinha ficado tanto tempo sem estudar. “O que são aqueles problemas de Matemática, o que aconteceu com as maçãs do Joãozinho?”, brinca.
Em contrapartida, se apaixonou pelas aulas de História, Geografia e Sociologia. Ainda comemora o fato de ter tido aulas de Ética e Artes. “O Cônego Paulo de Nadal é um luxo em formação”, diz. Além do aprendizado, também teve luta. Por 36 dias, participou da ocupação na escola, que fez parte da onda estudantil que tomou centenas de escolas no Estado em protesto aos projetos da chamada “Escola Sem Partido” e contra a intenção do governo Sartori de autorizar a cessão da administração das escolas para a iniciativa privada. Dessa vez, os estudantes venceram.
Em 2017, concluiu o 3º ano do Ensino Médio, também na Cônego. Já não precisava mais “inventar um quadradinho”, mas também já não era o bastante. Queria chegar à UFRGS. Mas não estava preparado. Precisava de um cursinho. Pela sua atuação no movimento social, Alex conheceu muitas figuras políticas. Uma delas, a vereadora Fernanda Melchionna (PSOL), foi quem o ajudou. “Liguei e falei: ‘Fê, eu nunca te pedi nada para mim, mas vou pedir. Preciso de um cursinho pré-vestibular'”.
Assim, ele chegou ao Emancipa, cursinho gratuito criado por iniciativa do PSOL. Pela primeira vez na vida, Alex teria aulas exclusivas de Redação, além de todas as disciplinas que o ajudaram a preencher lacunas que não conseguira ao cursar sete séries em três anos.
“Foram noites muito duras, tinha que manter-me trabalhando durante o dia e estudar à noite, além de manter a articulação do movimento. Em muitas ocasiões, tenho que viajar. Então, conversei com cada professora e professor, expliquei meu trabalho, meu desejo e sonho de estudar e pedi a eles apoio. Para compensar as minhas faltas, eu realizava trabalhos, pesquisas ou escrevia textos, sendo que alguns apresentei a todos os colegas”, conta, destacando um trabalho do 2º ano que fez sobre a Reforma da Previdência, apresentado para todas as turmas do Cônego.
No último dia 19 de janeiro, veio a notícia: Bixo Ciências Sociais. Um dos 26 aprovados na UFRGS que haviam cursado o Emancipa. “Vai ter catador doutor, sim senhor!”, diz Alex.